O parcelamento de crédito fiscal como instrumento de regulação

AutorProf. Paulo César Melo da Cunha
CargoGerente da Consultoria Jurídica da Procuradoria Geral da Agência Nacional de Saúde Suplementar; Mestrando em Direito Empresarial na Universidade Cândido Mendes.
Páginas1-22

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I Introdução

Cuida-se de examinar a possibilidade de parcelamento de crédito não tributário cobrado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, em especial aquele decorrente do ressarcimento ao SUS, como forma de orientação acerca dos procedimentos a serem adotados naquela entidade no que tange ao exercício de sua atividade reguladora.

Para tanto, far-se-á uma abordagem histórica - relativa ao advento do Estado Regulador e do surgimento da ANS - e uma abordagem comparativa - entre o tratamento jurídico dado ao parcelamento dos créditos tributários e não tributários.

II - A regulação

Como leciona TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR1, a função regulatória envolve atividades quase legislativas, quase executivas e quase jurisdicionais, devendo ser exercida de forma técnica e eqüidistante dos Page 2 interesses, com vistas a um ponto ótimo, que concilie os interesses de consumidores, fornecedores e do Poder Público, prevendo-se, para o exercício independente, o conceito de autarquia especial, com maior autonomia (pelo mandato fixo dos dirigentes e pela fonte de receita própria - taxa e multas). Da mesma linha de raciocínio comunga MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO2, acrescentando que a especialidade do regime de tais autarquias é fortalecida em razão de sua maior autonomia em relação à Administração Direta e em face do caráter final de suas decisões (na esfera administrativa).

À medida que o Estado teve uma redução significativa de atividades por força da reforma administrativa, busca-se a eficiência no trato de determinados serviços, sejam eles de natureza pública ou de ordem privada. Este, inclusive, o entendimento de LEILA CUÉLLAR3, in verbis:

"... considerando que o particular tende a procurar atingir seus interesses individuais, torna-se indispensável que se limite e discipline normativamente sua atuação, de molde a equilibrá-lo, para realização do interesse público. Vislumbra-se, então, a necessidade de incremento dos instrumentos de acompanhamento e fiscalização da atividade empresarial.

Assim, as agências reguladoras surgem num momento histórico em que se faz imprescindível a existência de entidades que tenham como missão controlar e regular determinadas atividades, para que sejam atingidos os objetivos almejados pelo Estado e se alcance a eficiência procurada. Possuem, portanto, função instrumental no que tange aos escopos fixados com a 'reforma do Estado', consistindo na citada 'terceira via' de atuação estatal.

Importa destacar que a ação disciplinadora dos entes reguladores tornar-se-ia inócua e restariam frustradas as razões de sua instituição, se tais órgãos se restringissem à prática de atos repressivos, por exemplo, sem poder elaborar normas de caráter geral, veiculatórias de sua política econômica. Tampouco seriam úteis na hipótese de configurarem mera 'reprodução', com denominação diversa, das tradicionais autarquias. Verifica-se, portanto, que as agências reguladoras precisam dispor de meios de atuação, de poderes compatíveis com as funções que lhes foram outorgadas."

Considerando que as Agências Reguladoras, no âmbito de sua abrangência normativa, disciplinam as políticas essenciais ao funcionamento dos mercados regulados, numa clara conseqüência do movimento de retirada Page 3 de responsabilidades governamentais que o Estado Moderno atravessa após sua reforma administrativa, a ilação que se tem é no sentido de que aquelas entidades tendem a ampliar seu papel normatizador sem limitações que impeçam os avanços da ação discricionária do administrador em eleger o melhor método para o exercício das atividades reguladoras, limitadas, obviamente, ao princípio da legalidade.

A Agência Reguladora pode e deve, pautada pela legalidade, valer-se dos instrumentos necessários à fixação de mecanismos que lhe autorizem a gerir o negócio administrativo relativamente aos setores sob seu domínio, em conformidade com os interesses sociais igualmente regulados4.

Seria uma das mutações que o Direito Administrativo atravessa para justificar a retirada da fase do estatismo, na qual prevalecia o interesse do Estado, em uma patente administração burocrática, transpondo-se para uma fase democrática, na qual o interesse da sociedade se caracteriza por uma administração gerencial, voltada para resultados: o Estado-administrador passa a se preocupar com a evolução da sociedade, por via da participação social em busca de resultados5.

Com esta exposição em torno de uma administração participativa, DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO6 defende o surgimento de alguns princípios, sem os quais prejudicado restaria este novo sistema:

"Para a exitosa implantação de uma administração gerencial é necessário obedecer a certos princípios técnico-administrativos, cabendo ser lembrados, como de maior relevo: o da autonomia e o da profissionalização.

Pelo princípio da autonomia, avança-se mais um passo na descentralização racional, com a finalidade de outorgar a necessária flexibilidade a entidades e órgãos para adequarem suas funções às diferentes necessidades de gestão da coisa pública, segundo suas características próprias e não obedientes a uma rígida conformidade com um padrão burocrático geral predeterminado."

Não se está, aqui, a defender qualquer espécie de procedimento contrário ao ordenamento já posto. Diversamente, pretende-se disciplinar a função do Estado na ordem econômica, estabelecendo seu importante papel como agente fomentador da participação da sociedade nos meios de Page 4 regulação. Este, inclusive, o escólio de LUIS ROBERTO BARROSO7 ao afirmar que "... é próprio do papel do Estado procurar influir legitimamente nas condutas dos agentes econômicos, através de mecanismos de fomento - incentivos fiscais, financiamentos públicos, redução da alíquota de impostos -, sem que possa, todavia, obrigar a iniciativa privada à adesão. De fato, nos termos do art. 174 da Carta em vigor, o Estado exercerá as funções de incentivo e planejamento, 'sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado'...".

Não pode o Estado obrigar o particular a exercer tal ou qual atividade, em desdita ao princípio da livre iniciativa, facultando-se-lhe, todavia, incentivar o ingresso nos respectivos segmentos; não pode o legislador pretender editar atos com força suficiente para sua aplicabilidade, porém tolhendo de alguma forma o agente regulador ao exercício de seus misteres; não pode, por sua vez, o agente regulador pretender exercer a atividade regulatória sem oferecer mecanismos suficientes e capazes para condicionar a subordinação hierárquica do administrado aos seus comandos; deve o agente público, no exercício de suas competências, editar os atos necessários a implementar as políticas traçadas na lei, com vistas a tornar acessível o comando regulador, preservando o propósito da idéia normativa, com vistas à eficiência nos resultados.

A administração moderna, visando aumentar a transparência dos seus atos, adotou um critério de descentralização, acolhendo a "regulática"8 como orientadora da desmonopolização do poder, reconhecendo-se outras fontes de produção de normas, públicas ou privadas, tendentes a guiar um mercado carente de um ordenamento equilibrado; por vezes se detinha a tecnologia da informação e dela se fazia mal uso (como é o caso corrente dos planos de saúde) ou, por outras, sequer se conhecia a abrangência do segmento a ser regulado.

É o que leciona JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO9, ao asseverar que "as mudanças estruturais da sociedade tornam clara a necessidade de o direito não ser considerado como regulador heterónomo de relações sociais mas como instrumento de trabalho para auto-regulação das relações sociais". E conclui afirmando que "independentemente dos postulados teóricos e políticos da regulática, é inegável que não existe um monopólio estatal de normação constitucionalmente consagrado. Pelo contrário: vários preceitos Page 5 constitucionais apontam para a necessidade de desconcentração e descentralização da regulação jurídica ..."

Reforça-se a subsidiariedade, respeitando-se a distinção de competências públicas e privadas; com isso, são fortalecidos os instrumentos de auto-regulação (na sociedade) e de consenso (entre sociedade e Estado).

A administração tende a evoluir de um critério imperativo para outro consensual, onde fontes alternativas, consensuais, inclinam-se com o fito de buscar o interesse público perseguido, aliadas a uma administração gerencial mais participativa e preocupada com a eficiência. Neste caso, o que se busca é a colaboração entre os setores público e privado. Novamente lançando mão dos ensinamentos de DIOGO DE FIGUEREDO MOREIRA NETO10, in verbis:

"Com relação à administração consensual, ela se reforça com o crescente refluxo da imperatividade. A afirmação imemorial da coerção, que se reconhece como a própria característica do Estado, cedendo agora à negociação e ao pacto, na linha prenunciada há mais de um século por Sir Henry Maine, que afirmou que a evolução das comunidades humanas parte de uma sociedade baseada no status para uma sociedade fundada no contrato." (grifos nossos)

VITAL MOREIRA11 leciona que "hoje as economias capitalistas são mistas quanto ao modelo de coordenação, na medida em que combinam em doses variáveis a coordenação estadual, a coordenação pelo mercado e a auto-regulação por intermédio dos próprios agentes económicos. Dizer que uma economia é de mercado é dizer apenas que nela predomina o princípio da coordenação pelo mercado. Nenhuma economia, por mais liberal que seja, dispensa hoje níveis de regulação mais ou menos intensa. O mercado coexiste com a regulação estadual."

Assim, pode-se dizer que ainda não alcançamos um estágio que permita a...

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