Comissões parlamentares de inquérito e suas competências: política, direito e devido processo legal

AutorProf. Luís Roberto Barroso
CargoProfessor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do estado e advogado no Rio de Janeiro.
Páginas1-25

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I Generalidades

Consoante doutrina clássica, o Estado realiza seus fins através de três funções em que se divide sua atividade: legislativa, administrativa e jurisdicional. É certo, porém, que nenhum dos Poderes estatais exerce de modo exclusivo a função que nominalmente lhe corresponde, mas sim têm nela sua competência principal ou predominante.1 Desse modo, além de suas atribuições típicas, desempenham eles, igualmente, funções secundárias ou não-típicas.Page 2

Nesta ordem de idéias, é de assinalar-se que a atividade dos órgãos legislativos não se esgota na função de legislar. Desde suas origens, integram a substância da atuação do Parlamento funções de tríplice natureza: legislativa, por certo, mas também a representativa e a fiscalizadora. Aliás, com a crescente hegemonia do Executivo no processo legislativo ? pela iniciativa reservada, pela sanção e veto, e pela edição de atos com força de lei ?, a ênfase da atuação do Legislativo tem recaído, efetivamente, na fiscalização, isto é, na investigação e no controle dos atos do Poder Público.

Um dos instrumentos pelos quais o Legislativo exerce seus poderes de fiscalização e controle é a instituição de comissões parlamentares de inquérito.2 Desde os primórdios do constitucionalismo moderno, na Inglaterra, passando pelas experiências francesa e norte-americana, reconhece-se ao Parlamento, embora sem previsão explícita em qualquer norma, o poder de organizar-se em comissões para apurar fatos relativos aos negócios públicos. No Brasil, nem a Constituição do Império, de 1824, nem a primeira Carta republicana, de 1891, contemplaram a possibilidade de criação de tais comissões. Nada obstante, em ambos os períodos elas foram nomeadas pelas Câmaras.3

Presente em mais de um dispositivo da Constituição de 1934, o tema ingressou no direito positivo brasileiro. Ausente na Carta outorgada de 1937, as Constituições de 1946, 1967-69 e 1988 voltaram a dele tratar de forma expressa.

II Poderes das comissões parlamentares de inquérito

A Carta Constitucional de 1988 previu a existência de comissões permanentes e temporárias (art. 58). Dentre estas últimas situam-se as comissões parlamentares de inquérito, por via das quais o Legislativo exerce seus poderes investigatórios, difusamente contemplados ao longo doPage 3 texto e referidos de modo expresso no inciso X do art. 49, cuja dicção é a seguinte:

"Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta."

A Constituição dispõe, ainda, em norma específica contida no § 3º do art. 58:

"Art. 58.............................................................................

§ 3º - As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores."

Os poderes exercitáveis pelas CPIs são amplos, mas não irrestritos. Em primeiro lugar, há requisitos de forma (requerimento de um terço dos membros da Casa Legislativa), de tempo (há de ser por prazo certo) e de substância (apuração de fato determinado). De parte isto, tendo por referência os objetivos para os quais podem ser criadas ? produção legislativa e fiscalização dos demais Poderes ?, sofrem elas limitações de duas ordens: de competência e de conteúdo.4

No que se refere à primeira, é fora de dúvida que as CPIs devem comportar-se no quadro de atribuições do Legislativo. A competência do Congresso, da Assembléia Legislativa e da Câmara Municipal é o limite do poder investigatório da comissão federal, estadual ou municipal. De fato, sendo elas instrumentos de ação do Parlamento, naturalmente não podem ter mais poderes do que este, consoante doutrina pacífica. Confira-se, a propósito, a lição de Raul Machado Horta, in verbis:Page 4

"A natureza instrumental da comissão de inquérito torna de óbvio entendimento a submissão do elemento acessório à competência do órgão que lhe dá vida." 5

No mesmo sentido, vale ainda conferir a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, in verbis:

"Na verdade, a regra de ouro é que o poder investigatório há de estar vinculado a uma atribuição constitucional específica. Destarte, não sendo da alçada da Casa ou do Congresso tomar decisão a respeito do ‘fato’ investigado, descabe a investigação. É a condição geral de pertinência, que enfatiza a doutrina."6

Por assim ser, não pode a comissão parlamentar de inquérito interferir com a autonomia individual e das entidades privadas. Além disto, tampouco pode ter caráter policial ou substitutivo da atuação de outros órgãos do Poder Público. É o que decorre, há muito, do ensinamento de Léon Duguit,7 reiterado por Carlos Maximiliano:

"Como o parlamento não pode confiar a uma entidade mais poderes do que ele tem, a competência das Comissões de Inquérito não abrange senão assuntos da esfera da ação e vigilância do Congresso; não se estende, por exemplo, a processos criminais ou a litígios judiciários, nem a matérias cujo estudo e solução incumbem aos poderes regionais ou municipais." 8 Page 5

É também nesta mesma linha a jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, como anota Leda Boechat Rodrigues:

"Por outro lado, o poder de investigação não pode ser confundido com qualquer dos poderes de execução da lei, conferidos, pela Constituição, ao Executivo e ao Judiciário. Outras limitações ao poder de investigar encontram-se, ainda, nas garantias específicas da Declaração de Direitos, tais como o privilégio contra a auto-incriminação." 9

Além do mais, a atuação da comissão há de restringir-se à esfera de estrito interesse público, embora no direito brasileiro, ao contrário dos sistemas italiano e espanhol,10 tal exigência seja implícita e não expressa. Nada obstante, seria inadmissível que se instalasse uma CPI para apurar fatos da vida privada de determinada pessoa, seja ela física ou jurídica. O mesmo se dá em Portugal, onde o art. 181 não explicita o objeto como de interesse público, mas é inequívoco o ensinamento da doutrina, como se extrai de J. J. Gomes Canotilho, in verbis:

"Parece também que as comissões de inquérito não podem incidir sobre a esfera privada do cidadão: a proteção dos direitos fundamentais constitucionais consagrada vale perante os inquéritos parlamentares." 11

A Suprema Corte americana tem decidido com a mesma orientação, de que é exemplo clássico o acórdão proferido em Quinn v. United States:

"Nenhuma investigação é um fim em si mesma e toda investigação deve guardar uma relação com alguma tarefa ou atribuição do Legislativo, donde decorre que assuntos puramente privados não se prestam a investigações Page 6 parlamentares; e embora de uma investigação possa resultar uma ação penal, em se verificando a ocorrência de delito, a instauração de processos judiciais ou o cumprimento de lei não são objetivos do poder investigatório do Parlamento."12

Em síntese: as comissões parlamentares de inquérito devem cingir-se à esfera de competências do Congresso Nacional, sem invadir atribuições dos outros Poderes, não podendo legitimamente imiscuir-se em fatos da vida privada nem se investir na função de polícia ou perseguidor criminal.

III Descabimento de instauração de comissão parlamentar de inquérito para investigar atos privados, sem repercussão sobre o interesse público

No direito constitucional norte-americano, de longa data, estabeleceu-se a regra de que os private affairs constituem um limite para a atuação das comissões parlamentares de inquérito.13 Também na doutrina nacional é este o entendimento predominante. Veja-se, por todos, o comentário de Manoel Gonçalves Ferreira Filho a respeito do tema, in verbis:

"As comissões de inquérito constituem um recurso para tornar mais efetivo e rigoroso o controle que é deferido aos parlamentares sobre toda a máquina estatal ."

O tema enseja aprofundamento doutrinário.14

  1. espaço público e espaço privado:

  2. princípio da legalidade e autonomia da vontade no direito brasileiro.Page 7

Os domínios do direito privado e do direito público convivem, modernamente, com grandes espaços de superposição, marcados pela publicização das relações privadas, notadamente pela introdução de normas de ordem pública na sua disciplina. O fenômeno é contemporâneo do processo pelo qual o Código Civil perde algo de sua importância no sistema de relações privadas, substituído por um conjunto de microssistemas, como (i) a Lei de Locações, (ii) o Código do Consumidor, (iii) o Estatuto da Criança e do Adolescente.15 Tudo isto sem mencionar o Direito do Trabalho, uma situação à parte.

No caso específico do Brasil, as relações jurídicas em geral, públicas...

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