O passado: do consentimento informado à autonomia prospectiva

AutorLuciana Dadalto
Páginas1-39
CAPÍTULO 1
O PASSADO: DO CONSENTIMENTO
INFORMADO À AUTONOMIA PROSPECTIVA
1.1 COMPREENDENDO O CONSENTIMENTO
O Dicionário Houaiss apresenta quatro acepções da palavra consentimento.
1. manifestação favorável a que (alguém) faça (algo); permissão, licença;
2. manifestação de que se aprova (algo); anuência, aquiescência, concordância;
3. tolerância, condescendência;
4. uniformidade de opiniões, concordância de declarações, acordo de vontade das partes para
se alcançar um objetivo comum.1
Destas, é possível inferir que o consentimento, em linhas gerais, é expressão da
manifestação da vontade do sujeito. Na esfera do Direito Privado, especif‌icamente
no âmbito dos negócios jurídicos, Casabona2 atrela o conceito de consentimento
ao de autonomia, vez que o consentimento seria a materialização da vontade. Tal
entendimento é bastante plausível, principalmente porque a autonomia pressupõe,
uma vontade livre.
Interessa-nos, aqui, o consentimento livre e esclarecido. Essa espécie do gênero
consentimento pressupõe que o indivíduo, ao consentir na realização do negócio
jurídico, seja autônomo e tenha o esclarecimento necessário sobre o negócio.
O consentimento livre e esclarecido é uma evolução jurídica do consentimento
informado surgido pós Segunda Guerra Mundial, pois conforma a autonomia do
paciente ao direito à informação e aos direitos do consumidor.
O direito à informação está previsto no artigo 5º, inciso XIV, da Constituição da
República, e trata-se do direito de todo cidadão brasileiro a ter acesso à informação,
resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício prof‌issional.
1. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: https://houaiss.uol.com.
br/corporativo/apps/uol_www/v5-4/html/index.php#1. Acesso em: 05 ago. 2021.
2. CASABONA, Carlos María Romeo. O consentimento informado na relação entre médico e paciente: aspectos
jurídicos. In: CASABONA, Carlos María Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coord.). Biotecnologia e
suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 128-172.
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TESTAMENTO VITAL • LUCIANA DADALTO
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Esse dispositivo constitucional tem caráter geral e se refere a qualquer tipo de
informação. Aqui interessa a informação médica, especif‌icamente, o dever do médico
de esclarecer/informar o paciente.
A relação entre médico e paciente é uma relação consumerista, segundo inter-
Defesa do Consumidor).4 Assim, o direito de informação do paciente está também
regulado pelo artigo 6º, III, deste diploma legal, que dispõe:
Artigo 6º São direitos básicos do consumidor
[...]
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especicação
correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem.5
O Código de Ética Médica em vigor prevê, em seu artigo 34, que é vedado ao
médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e ob-
jetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano,
devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu responsável legal.”6
Assim, resta claro que o médico tem o dever de informar o paciente acerca do
tratamento a que deverá ser submetido. Agora, não basta mais explicar o procedimento
a ser realizado, é necessário informar ao paciente as opções terapêuticas disponíveis,
esclarecer os prós e contras e deixar que ele, livremente, tome sua decisão.
[...] o ato de consentir tem que ser qualicado, ou seja, livre de qualquer ingerência externa
capaz de viciar a decisão do paciente. [...] Os defensores desse consentimento qualicado
entendem que sua validade não se atém à liberdade de escolha frente à informação e exigem
que essa informação seja um esclarecimento pleno sobre todas as implicações inerentes ao
tratamento.7
3. “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações in-
suf‌icientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [...] § 4º a responsabilidade pessoal dos prof‌issionais
liberais será apurada mediante a verif‌icação de culpa”. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe
sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1990].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 05 ago. 2021.
4. Frise-se que tal entendimento é contestado pelo Conselho Federal de Medicina e pela mais abalizada dou-
trina nacional em Direito Médico, notadamente pelos professores Miguel Kfouri Neto e Eduardo Dantas.
5. BRASIL, op. cit.
6. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM 2.217, de 27 de setembro de 2018, modif‌icada
pelas Resoluções CFM 2.222/2018 e 2.226/2019. Aprova o Código de Ética Médica. Brasília, DF: Presidência
da República, [2018]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/
content/id/48226289/do1-2018-11-01-resolucao-n-2-217-de-27-de-setembro-de-2018-48226042. Acesso
em: 05.08.2021.
7. MATOS, Gilson Ely Chaves de. Aspectos jurídicos e bioéticos do consentimento informado na prática mé-
dica. Revista Bioética, Brasília, 2007. v. 15, n. 2. p. 201, 2007. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.
org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/41/44. Acesso em: 05 ago. 2021.
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CAPÍTULO 1 • O PASSADO: DO CONSENTIMENTO INFORMADO À AUTONOMIA PROSPECTIVA
André Dias Pereira8 ressalta que nos Estados Unidos da América (EUA), por
exemplo, exige-se que a informação seja transmitida em linguagem inteligível ao
paciente, não sendo necessário averiguar sua compreensão a respeito dela, mas apenas
se lhe foi comunicada de modo compreensível.
A diferença entre informação e esclarecimento pode parecer, em um primeiro
momento, insignif‌icante. Entretanto, Magno9 af‌irma que, enquanto o esclarecimen-
to pressupõe o diálogo entre médico e paciente, para a informação há apenas uma
introdução ao diálogo. Importante mencionar um exemplo do autor que ajuda a
compreender a distinção:
Se o médico disser ao paciente: – Você deve ser submetido a uma tomograa computadorizada
com uso de contraste. Está de acordo? Provavelmente o paciente responderá que sim, automati-
camente. Isto porque foi apenas informado do exame.
Entretanto, se o médico ‘esclarecer’ ao paciente o que é tomograa computadorizada, o que é
contraste e os efeitos adversos que pode causar ao paciente, provavelmente este vai querer discutir
com o médico a possibilidade de realizar outros exames em substituição à tomograa, ou até
de não se submeter a exame nenhum. Esta é a grande diferença entre ‘informar’ e esclarecer’.10
É preciso ter em mente que o dever de esclarecimento não cerceia a autonomia
prof‌issional do médico, pois se de um lado há o dever de esclarecer/informar o pa-
ciente, de outro há o dever de agir com cautela ao repassar a informação, sopesando
o melhor momento para informar e quais informações são imprescindíveis para que
o paciente possa consentir de modo livre e esclarecido e quais provocarão sofrimento
e dor desnecessários a ele.11
1.1.1 O consentimento livre e esclarecido na relação médico-paciente
O consentimento livre e esclarecido pode ocorrer em várias situações que
envolvam aspectos médicos, sem, contudo, conf‌igurar uma relação médico-pacien-
te, como, por exemplo, no caso do consentimento necessário para pesquisas que
8. PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004.
9. MAGNO, Helio Antonio. A responsabilidade civil do médico diante da autonomia do paciente. In: GUER-
RA, Arthur Magno e Silva (Coord.). Biodireito e bioética: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2005. p. 315-345.
10. PEREIRA, op. cit., p. 319.
11. “Talvez o limite mais controvertido no direito ao consentimento informado não provenha do paciente,
e sim do prof‌issional de saúde. O médico ou a enfermeira podem decidir não revelar a informação ao
paciente e não buscar sua participação na tomada de decisões. Essa exceção recebe o nome de privilégio
médico ou terapêutico. [...]. Se um médico determina que proporcionar informação ao paciente e buscar
sua participação causará dano a este, o princípio compensatório da benef‌icência e não malef‌icência justif‌ica
o rechaço do direito do paciente ao consentimento informado. Se o médico está convencido de que dar as
informações causará um dano ao paciente, está dispensado desta obrigação pela obrigação de nunca causar
dano”. DRANE, James F. El cuidado del enfermo terminal: ética clínica y recomendaciones prácticas para
instituciones de salud y servicios de cuidados domiciliarios. Washington: Organización Panamericana de
la Salud, 1999. p. 74, tradução nossa.
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