O presente: testamento vital

AutorLuciana Dadalto
Páginas41-102
CAPÍTULO 2
O PRESENTE: TESTAMENTO VITAL
2.1 O TESTAMENTO VITAL NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
“Una legge sul Testamento biologico non deve risolvere um problema della politica,
ma riconoscere un diritto dei cittadini”.
Stefano Rodotá
Se é certo que o testamento vital é um instituto ainda pouco conhecido no Bra-
sil, não se pode olvidar que a experiência estrangeira acerca de tal documento é de
grande valia para uma análise detalhada do instituto e de como ele tem sido aplicado,
a f‌im de orientar a construção de parâmetros jurídicos para a feitura e efetivação do
testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro.
O presente capítulo, portanto, tem por objetivo específ‌ico fazer um esforço his-
tórico para verif‌icar as origens do testamento vital e analisar como esse documento
tem sido utilizado nos países em que está positivado.
Assim, o que se pretende é a análise do testamento vital em diversos países e das
características do instituto em cada um deles, sob os diversos nomes a ele concedidos:
living will, biotestamento, testament de vie, instruciones previas, testamento vital etc.
2.1.1 A experiência estadunidense
A expressão living will foi cunhada nos EUA no f‌inal da década de 1960. Segundo
Emanuel,1 o testamento vital foi proposto pela primeira vez em 1967, pela Sociedade
Americana para a Eutanásia, como um “documento de cuidados antecipados, pelo
qual o indivíduo poderia registrar seu desejo de interromper as intervenções médicas
de manutenção da vida”.2
O primeiro modelo de living will e as premissas desse documento foram cunha-
dos em 1969, por Luis Kutner3 que se amparou no consentimento livre e esclarecido
1. EMANUEL, Ezekiel J.; EMANUEL, Linda L. Living wills: past, present, and future. The Journal of Clinical
Ethics, Hagerstown, 1990. v. 1, n. 1, p. 1-19, 1990. Disponível em: https://repository.library.georgetown.
edu/handle/10822/737937. Acesso em: 27 ago. 2021.
2. Ibidem, p. 10, tradução nossa.
3. KUTNER, L. Due process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal. Indiana Law Journal, Bloomington,
1969. v. 44, p. 539-554, 1969. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.
cgi?referer=&httpsredir=1&article=2525&context=ilj. Acesso em: 27 ago. 2021.
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para desenvolver o testamento vital e, inclusive, propôs que os pacientes pudessem
acrescentar uma cláusula ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
assinado para a realização de cirurgias ou procedimentos mais radicais, manifestando
sua recusa a tratamentos caso sua condição se torne incurável ou seu corpo f‌ique em
estado vegetativo.4
Reconhecendo que a legislação norte-americana vedava a eutanásia e o suicí-
dio assistido, mas, que ao mesmo tempo, era legítimo o direito de o paciente com
um quadro incurável e irreversível morrer como desejasse, ele defendeu que seguir
os desejos desse paciente acerca de recusas de tratamentos se afastava do conceito
clássico de eutanásia, uma vez que essa recusa não englobava os meios ordinários
de preservação da vida.
Desta feita, Kutner propôs um documento – ao qual atribuiu o nome de living
will5 – em que o paciente deixaria por escrito sua recusa a se submeter a determinados
tratamentos quando fossem comprovados o estado vegetativo ou a terminalidade –
inclusive, propôs que os seguidores da religião Testemunhas de Jeová o utilizassem
para manifestarem recusa às transfusões sanguíneas. Com esse estudo, Luis Kutner
alicerçou as bases do testamento vital, que, a partir de então, tem sido estudado,
discutido, modif‌icado e criticado pelos estudiosos da Bioética. Desde então, os
Estados Unidos em muito evoluíram nos documentos de manifestação de vontade
para tratamentos médicos.
Os EUA possuem um sistema legal de common law, o que signif‌ica, em linhas
gerais, que a legislação é criada a partir da jurisprudência. O primeiro caso judicial
a tratar do living will foi em 1976, ano em que Karen Ann Quinlan, uma americana
de 22 anos, entrou em coma por causas nunca reveladas6 e seus pais adotivos, após
serem informados pelos médicos da irreversibilidade do caso, solicitaram a retirada
do respirador e da AHA. Frente à recusa do médico responsável, acionaram o Poder
Judiciário de New Jersey – estado no qual a paciente residia – objetivando uma au-
4. Ibidem, p. 550.
5. Esse termo apareceu pela primeira vez em 1967, em uma proposta da Sociedade Americana para a Euta-
násia, instituição para a qual Kutner prestava serviços jurídicos. Cf. EMANUEL, Ezekiel J.; EMANUEL,
Linda L. Living wills: past, present, and future. The Journal of Clinical Ethics, Hagerstown, 1990. v. 1, n.
1, p. 10, 1990. Disponível em: https://repository.library.georgetown.edu/handle/10822/737937. A Acesso
em: 27 ago. 2021. Kutner sugeriu outros nomes para o instituto: “declaração que determina o f‌im da vida”
(declaration determining the termination of life), “testamentopermitindo a morte” (testament permitting
death), “declaração de autonomia corporal” (declaration for bodily autonomy), “declaração de término do
tratamento”(declaration for ending treatment) e “relação de conf‌iança do corpo” (body trust). Contudo, o
nome living will (desejos de vida) é o mais adotado, até mesmo por ter sido utilizado no título do paradig-
mático artigo sobre o tema. Todavia, é preciso ter em mente que “testamento vita”, nome pelo qual o living
will é conhecido no Brasil, é uma tradução errada, vez que will é sinônimo de testamento, mas também de
desejo, razão pela qual a tradução literal mais apropriada seria “desejos de vida”.
6. As causas do coma de Karen Ann Quinlan nunca foram esclarecidas. Isso gera várias informações desencon-
tradas na doutrina jurídica. Existem informações de que Karen entrou em coma em virtude de um acidente
automobilístico e outras de que o coma foi em decorrência de consumo excessivo de álcool e drogas. Para
maiores detalhes, sugere-se a leitura de ROTHMAN, David J. Strangers at the bedside: a history of how
Law and Bioethics transformed medical decision making. New York: BasicBooks, 1991.
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torização judicial para a suspensão do esforço terapêutico,7 sob alegação de que a
jovem havia manifestado o desejo de não ser mantida viva por aparelhos – manifes-
tação ocorrida em conversas anteriores ao coma, a respeito de outros pacientes com
estados irreversíveis submetidos a medidas de esforço terapêutico.
A autorização foi negada em primeira instância, sob o argumento de que a decla-
ração da paciente não tinha respaldo legal. Em segunda instância, a Suprema Corte de
New Jersey8 designou o Comitê de Ética do Hospital St. Clair para avaliar a paciente
e o prognóstico de seu quadro clínico. O comitê teve que ser criado especialmente
para o caso, em virtude da inexistência de comitês de ética no hospital e em quase
todos os hospitais norte-americanos. Seu parecer concluiu pela irreversibilidade do
quadro e, em 31.03.1976, a Suprema Corte de New Jersey concedeu à família de Ka-
ren o direito de solicitar ao médico o desligamento dos aparelhos que a mantinham
viva, bem como a suspensão da AHA.
Após o desligamento dos aparelhos, Karen viveu mais nove anos e faleceu em
decorrência de uma pneumonia, sem respirador externo e com o mesmo quadro
clínico de antes.
Nesse mesmo ano, motivado pela grande repercussão do caso, o estado da
Califórnia aprovou o Natural Death Act,9 lei que garantia ao indivíduo o direito de
recusar ou de suspender um tratamento médico e protegia os prof‌issionais de saúde
de eventual processo judicial por terem respeitado a vontade manifestada do paciente.
Após sua aprovação, membros de algumas associações médicas californianas
f‌izeram as Guidelines and Directive, contendo orientações para ajudar o outorgante a
instruir seu médico acerca do uso dos métodos artif‌iciais de prolongamento de vida.
As orientações dispostas nesse documento são: a) antes de redigir o testamento
vital, procurar uma pessoa, que não precisa ser advogado nem notário público, e
solicitar ajuda para a redação; b) solicitar ao seu médico que esse testamento vital
faça parte de seu histórico clínico; c) as duas testemunhas que assinarem o testamen-
to vital não podem ter nenhum parentesco sanguíneo com o paciente, nem serem
casadas com ele; não podem, ainda, estar benef‌iciadas em seu testamento e nem ter
alguma demanda sobre bens de sua propriedade; d) o médico do paciente não pode
ser testemunha, nem ninguém que trabalhe com ele. Se a pessoa assinar o documento
dentro do hospital, nenhum dos empregados do hospital poderá ser testemunha.
7. Ribeiro af‌irma que esforço terapêutico é a prática de manter o paciente diagnosticado com quadro incurável
vivo com ajuda de aparelhos. Cf. RIBEIRO, Diaulas Costa. A eterna busca da imortalidade humana: a ter-
minalidade da vida e a autonomia. Revista Bioética, Brasília, 2005. v. 13, n. 2, p. 112-120, 2005. Disponível
em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/112. Acesso em: 12 ago. 2021.
8. Disponível em: https://euthanasia.procon.org/wp-content/uploads/sites/43/in_re_quinlan.pdf. Acesso em:
27ago. 2021.
9. TOWERS, Bernard. The impact of the California Natural Death Act. Journal of Medical Ethics. 1978, n. 4,
v. 2, p. 96-98. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/27715703. Acesso em: 27 ago. 2021.
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