Sujeição passiva tributária: dos precursores do direito tributário brasileiro até a edição do CTN

AutorRenato Lopes Becho
CargoBacharel em Direito pela UFMG. Especialista em Cooperativismo pela UNISINOS/RS
Páginas54-73

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I - Colocação do tema

A sujeição passiva tributária ocupa um lugar de destaque nos estudos do direito tributário. Quer seja na teoria do fato gerador, quer seja na teoria da regra matriz tributária, a sujeição passiva verifica a classe das pessoas que estão obrigadas a desembolsar dinheiro em prol da manutenção do Estado. Modernamente, a filosofia do direito tributário de inclinação humanista, que procura aplicar a doutrina dos direitos humanos na tributação, destaca o sujeito passivo a tal ponto que almeja vê-lo no centro do direito tributário, no lugar em que hoje vemos o tributo. No Código Tributário Nacional, a sujeição passiva está o capítulo IV do título dedicado à Obrigação Tributária (arts. 121 a 138).

No presente estudo, buscamos saber o que era ensinado a respeito do sujeito passivo antes da edição da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 (que, posteriormente, recebeu o título de Código Tributário Nacional). Em outros termos, almejamos saber como era apresentada a sujeição passiva tributária nos primórdios do direito tributário. Como os Autores precursores e clássicos - aqueles cujas obras resistiram ao passar dos anos e das leis -viam o emaranhado de institutos jurídicos e de classes de pessoas que poderiam ser compelidas a recolher os tributos? É da visão desses Autores que trata o presente estudo. Além disso, almejamos saber qual a influência dos ensinamentos desses Autores na elaboração do Código Tributário Nacional. Para tanto, após a exposição da doutrina, faremos um cotejo entre o que os Autores ensinavam e o que veio a ser disciplinado pelo legislador.

Ao voltarmos nossa atenção para a dogmática anterior ao CTN, pretendemos conhecer um pouco o ambiente em que a

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codificação foi elaborada, o que poderá trazer luzes para a compreensão dos textos legais que hoje regem a matéria.

II - Breve nota sobre o trabalho científico

Toda ciência é uma construção de gerações. A produção científica atual, em qualquer das áreas, é capaz de avançar nos estudos e descobrir novas tecnologias por laborar sobre os avanços alcançados pelas gerações passadas. Nenhuma sociedade tem que reinventar a roda. Desde que organizou a transmissão do conhecimento, o homem elabora sua contribuição - notada-mente se sua função maior for somente repassar o que aprendeu - sobre o que a geração anterior construiu e deixou como legado. E, assim, o conhecimento humano atual avança sobre bases que remontam aos primórdios da civilização.

Extraímos essa evidente lição de Su-san Haack, quando a filósofa anotou:

"Cada investigador, na mais mundana das investigações cotidianas, depende de outros; de outro modo, cada qual teria que começar o quebra-cabeça sozinho e desde o início. A investigação científico-natural não é uma exceção; de fato, é assim uma vez mais: o trabalho, cooperativo e competitivo, de uma vasta comunidade intergera-cional de investigadores, uma empresa profunda e inevitavelmente social."1

Acreditamos que a assertiva vale, igualmente, para a investigação científico-cultural. A construção sobre bases herdadas não é privilégio das ciências naturais. A identificação de que o trabalho científico (incluindo o jurídico) é uma construção de gerações é elementar, mas por vezes parece ser negada por alguns pensadores, que supõem ser possível elaborar suas teorias sem o respaldo - ainda que crítico - e a consideração do que lhe foi repassado. Não é o que pretendemos fazer.

É pensando nesse compromisso científico com a geração passada que nos vemos motivados a estudar os Autores aqui citados. O corte metodológico feito foi na edição do Código Tributário Nacional. Trabalhamos sobre os escritos produzidos antes de 1966. Com isso, procuraremos saber como os juristas viam a sujeição passiva antes do CTN. Queremos saber, principalmente, qual a influência dessa doutrina na elaboração do Código e o que do antigo pensamento perdura até hoje.

III-A sujeição passiva tributária na ciência das finanças

Inicialmente, colhemos algumas informações dogmáticas na ciência das finanças, disciplina que antecedeu o direito tributário e que fazia parte mais da política do que do direito ou da economia. Como será demonstrado no momento oportuno, muitas considerações dessa época, quando a tributação era vista dentro da política, ainda influenciam algumas correntes de pensamento no direito tributário brasileiro atual.

Provavelmente era comum, na ciência das finanças, não abrir um capítulo próprio para estudar a sujeição passiva tributária. Todavia, dentro de outros tópicos, é possível extrair-se referências ainda úteis. Foi assim com Alberto Deodato, em obra tradicional à época e que recebeu diversas edições. Da parte em que o Autor ensinava as técnicas e os efeitos dos impostos, tiramos a seguinte explicação, ilustrativa para a repercussão dos tributos:

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"A repercussão é o fenômeno pelo qual aquele sobre quem o imposto deve recair, segundo a lei, que é o contribuinte de jure, e que faz, apenas, o adiantamento do imposto, descarrega, em todo ou em parte, o peso do mesmo sobre outrem. A traslação é o processo de transferência consecutiva do imposto do contribuinte de jure para o contribuinte de fato. Assim, o imposto é assentado sobre o fabricante de farinha de trigo, que é José, contribuinte de jure, o dono do moinho. José, entretanto, adianta, apenas, o imposto. Traslada-o sobre Pedro, que é o dono da padaria. Pedro sobre Antônio, que é consumidor. Esse processo de José a Antônio é a traslação. A traslação, porém, não pode ser infinita.

"Passará a um certo indivíduo ou negócio que não poderá trasladar e que pagará o ônus. Sobre esse último indivíduo, que será o contribuinte de fato, sobre quem repercutiu o imposto, se dará o que se chama a incidência do imposto. Com a incidência termina a traslação."2

Apesar de Deodato ter procurado distinguir entre repercussão e traslação, sendo o primeiro um fenômeno e o segundo um processo, não nos parece claro existirem as duas figuras distintas. Pelas lições que nos foram repassadas, ficamos com a impressão de tratarem, na realidade, de um único fato: a transferência do custo do tributo na cadeia que vai do produtor ao consumidor. O fato de que Deodato oferece apenas um exemplo quando ensina sobre a repercussão e a traslação somente reforça a aparência de serem dois rótulos para um mesmo conteúdo.

De qualquer forma, havendo dois mecanismos (repercussão e traslação) ou somente um (repercussão/traslação), o fato é que a sistemática de repasse de custos fiscais para o preço de produtos e serviços continua existindo naturalmente e não deveria interessar ao direito. É dizer: a sistemática de repasse do custo fiscal não deve-ria ser disciplinada pelo legislador. Quando esse interfere em procedimentos econômicos que tais (o que engloba a inflação), acaba por gerar distorções mercadológicas de difícil solução jurídica. Por vezes, empresas podem fechar e pessoas podem ser levadas a situações de penúria pela intervenção legislativa desastrosa. Todavia, do ponto de vista do direito, a interferência do legislador nos procedimentos tipicamente econômicos pode criar situações de injustiça, quando o contribuinte "de jure" não encontra meios para provar a repercussão/ traslação fiscal.

Mas o ponto de nosso interesse é a pesquisa da sujeição passiva. Quanto a essa, Deodato menciona o contribuinte de direito (de jure) e contribuinte de fato, ainda um reflexo da repercussão e da traslação e que não deve despertar o interesse do jurista, exceto se vier a ser disciplinada pelo legislador (como, de fato, acabou ocorrendo, quer pelo art. 166 do CTN, quer pela Emenda Constitucional n. 3, de 1993, que criou a substituição tributária por fato futuro - CF, art. 150, § 7° -, constitucionalizando os efeitos econômicos acima descritos e dando-lhes natureza jurídica).

Finalizando a análise do excerto de Deodato, indicamos que o Autor considerava a incidência do imposto apenas no consumidor final (contribuinte de fato). Pode ser que essa conclusão ainda seja válida para a economia ou para a administração de empresa, mas não é acolhida na ciência do direito tributário, que identifica como contribuinte aquele obrigado a recolher o tributo aos cofres públicos, independentemente de repercutir a incidência ou não.

Em livro dedicado à ciência das finanças, identificamos a lição de Aliomar Baleeiro que também prenunciava a dogmática nacional sobre a sujeição passiva. Enquanto cientista das finanças, Baleeiro não abriu um capítulo sobre a sujeição passiva. Mas, no capítulo intitulado Técnica da Tributação, na seção a técnica da arrecadação, o Autor identificou três téc-

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nicas principais de arrecadação de tributos, a saber:

"a) o recolhimento direto do contribuinte aos cofres públicos;

"b) retenção ou desconto do tributo por um terceiro, que fica responsável pelo recolhimento às burras públicas;

"c) obrigação, para o contribuinte de adquirir selos ou estampilhas, para aposição à coisa ou documento, e respectiva obliteração."3

A primeira referência se mantém até hoje: o contribuinte é aquele que faz o recolhimento direito do tributo aos cofres públicos, conforme adiantado acima. Ao que parece, quando Baleeiro escreveu "recolhimento direto" ele quis se referir ao contribuinte como sendo a pessoa que realiza o fato gerador. Em outras palavras, por realizar o fato econômico que faz surgir o dever de recolher o tributo, o contribuinte cumpre diretamente a obrigação, procedimento que não envolve nenhuma outra pessoa.

Destacamos a segunda hipótese levantada por Baleeiro: a "retenção ou desconto do tributo por terceiro"...

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