PATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE: UMA LEI- TURA CRÍTICA DAS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NAS TRÊS ÚLTIMAS VERSÕES DO DSM

AutorRoberto de Oliveira Preu, Carolina Franco Brito
Páginas134-154
GÊNERO|Niterói|v.19|n.2|134 |1. sem.2019
PATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE: UMA LEI-
TURA CRÍTICA DAS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS
NAS TRÊS ÚLTIMAS VERSÕES DO DSM
Roberto de Oliveira Preu1
Carolina Franco Brito2
Resumo: O presente artigo possui como objetivo principal compreender
se a categoria psiquiátrica de Disforia de Gênero, criada para definir pes-
soas transexuais, funciona ainda como vetor de patologização da homos-
sexualidade. Esta pesquisa foi realizada e dividida em duas partes. No pri-
meiro momento foi feita uma análise crítica das categorias diagnósticas de
transexualidade nas últimas três edições do DSM. No segundo, foi estabe-
lecida uma relação entre o diagnóstico de Disforia de Gênero com a homos-
sexualidade. Faz-se uso de uma metodologia de análise bibliográfica de arti-
gos sobre o tema referido e do instrumento psiquiátrico em questão, o DSM.
Palavras chave: homossexualidade; transexualidade; DSM.
Abstract: The main objective of this article is to understand if the psychiatric
category of Gender Dysphoria, created to define transsexual people, still acts as
a pathologizing vector for homosexuality. This research was produced and divided
into two sections. In the first one, a critical analysis on the diagnostic categories of
transsexuality in DSM's three last editions will be performed. In the second part,
the relationship between diagnosis of Gender Dysphoria and homosexuality will
be established. The methodology used includes bibliographic analysis of articles
on the subject referred and of the psychiatric instrument in question, the DSM.
Keywords: homosexuality; transsexuality; DSM.
Introdução
Nas diferentes ciências se faz presente um pensamento hegemônico acerca
das noções de sexo e gênero. Estas questões começaram a ganhar maior visibi-
lidade com as discussões sobre os assuntos concernentes à comunidade LGBT
(lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), a qual tem estado cada vez
mais em evidência, estando mais presente na pauta das discussões – ainda que
1 Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Psicologia da Universi-
dade Federal Fluminense. E-mail: robbypreu@gmail.com
2 Psicóloga pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: carolinafrancobrito@gmail.com
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por motivações diversas – tanto da comunidade científica, quanto do restante da
população.
Os estudos de gênero são herdeiros de uma longa produção no campo das
ciências humanas (entre elas, antropologia, sociologia, psicologia, filosofia e psi-
canálise) os quais remetem, em geral, à forma como essas disciplinas se estabele-
ceram, desde sua emergência, no século XIX, a partir da distinção entre natureza
e cultura. A crítica proposta por Judith Butler (2014) a esse viés epistemológico
é base para a construção deste trabalho, partindo da perspectiva que considera a
ciência e seus objetos resultados de uma produção histórica. Assim, ao se tratar
da distinção comumente feita entre sexo e gênero, usar-se-á sempre o sentido
de considerar a produção histórica desses termos, como bem ilustra o trabalho do
Thomas Laqueur (2001) ao evidenciar que o dimorfismo3 da sexualidade tem sua
emergência com o surgimento das ciências biológicas dos séculos XVIII e XIX.
Nesse sentido, objetiva esse trabalho uma revelação do aspecto naturalizante do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e também uma
demonstração de que mesmo em suas versões mais contemporâneas existem
ainda resquícios desse preconceito naturalizante, especialmente no que tange à
questão trans.
O conceito de gênero aparece historicamente para atenuar o aspecto natu-
ral conferido à sexualidade, mantendo a dicotomia natureza/cultura e atribuindo
diferenças comportamentais a variações no quesito cultural. Scott (1995, p. 72)
afirma que
O termo “gênero” parece ter feito sua aparição inicial entre as feministas america-
nas, que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções base-
adas no sexo. A palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito
no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”.
O sexo é, portanto, entendido como um elemento da natureza, em função
dessa dicotomia criada no século XVIII. É localizado no corpo, nos órgãos sexuais
e reprodutores. A partir de uma “identificação” das características físicas feita
pela medicina, os indivíduos são diferenciados em corpos-homens e corpos-mu-
lheres (BENTO, 2014). Após essa nomeação dos corpos, são esperados certos
comportamentos desses indivíduos que serão socializados de maneiras distintas.
Com base no sexo biológico são definidos os papéis de gênero, expressos, por
exemplo, em meninas brincando de bonecas e meninos de carrinhos, como se
uma coisa fosse resultante óbvia de outra (BUTLER, 2009). Contudo, algumas
vivências que contrariam essa linearidade, postulada forçosamente como natural,
3 Segundo Ayouch (2015, p. 28), “foi só no século XVIII que começou a aparecer o modelo do dimorfismo que
coloca a ênfase sobre as diferenças anatômicas, opõe radicalmente os corpos feminino e masculino e faz proceder a sexuali-
dade e as sexuações da biologia dos corpos”.
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