A transmissão do patrimônio na agricultura familiar: uma análise a partir da compensação das filhas

AutorRosani Marisa Spanevello - Adriano Lago
CargoDoutora em Desenvolvimento Rural, Profª. Adjunta do Departamento de Zootecnia do Centro de Educação Superior Norte (CESNORS) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - Doutor em Agronegócios. Prof. Adjunto do Departamento de Agronomia do Centro de Educação Superior Norte (CESNORS), Campus Frederico Westphalen, Universidade Federal de Santa...
Páginas222-241

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Rosani Marisa Spanevello1

Adriano Lago2

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INTRODUÇÃO

Considerando as populações rurais, especialmente os agricultores familiares, observase uma divisão no processo de reprodução social. De um lado, está a reprodução cotidiana ou diária; de outro, a reprodução das gerações futuras. Conforme Tedesco (1999), a reprodução dos agricultores está intimamente relacionada à produção e à reprodução dos estabelecimentos e dos indivíduos nela envolvidos.

A noção citada acima se aproxima da noção de reprodução social destacada por Almeida (1986). O autor faz uma revisão sobre os diferentes estudos3 realizados entre década de 1970 e 1980, especialmente no Sul e Nordeste brasileiro, e comprova a abordagem da reprodução sob dois enfoques. No primeiro, a reprodução anual ou de ciclo curto e, no segundo, a reprodução geracional ou de ciclo longo.

A reprodução de ciclo curto compreende a combinação de fatores relativos ao trabalho, conhecimento tradicional e recursos naturais para atender ao consumo familiar e

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repor os insumos necessários para o reinício do processo produtivo. De forma geral, o autor relaciona a reprodução de ciclo curto com a lógica econômica da família, englobando elementos como trabalho e consumo. Já a reprodução de ciclo longo envolve os aspectos do ciclo geracional e de como as famílias se perpetuam. A perspectiva de perpetuação da família é baseada em aspectos relacionados ao nascimento, casamento, morte e herança (ALMEIDA, 1986). Na reprodução de ciclo longo também podem ser acrescentadas as questões relativas à formação das novas gerações de agricultores, como a sucessão e a saída dos pais do comando do estabelecimento.

É dentro da dimensão da reprodução de longo prazo que se enquadra o presente artigo ao tratar do tema da transmissão do patrimônio entre os agricultores familiares. Na sua essência, a transmissão do patrimônio envolve a divisão dos bens ou a herança -especialmente a terra - entre os filhos. Esse processo constituise em um dos movimentos básicos da reprodução na agricultura familiar (WOORTMANN, 1995), porque só tem direito ao patrimônio quem realmente faz parte da rede de relações familiares, pois ela é fruto direto do vínculo do parentesco (TEDESCO, 1999). Além disso, segundo Carneiro (2001), as formas de transmissão são múltiplas e variáveis de acordo com o contexto histórico, econômico e geográfico. Os arranjos também dependem das possibilidades de trabalho assalariado e das características da família (número e sexo dos filhos) (SEYFERTH, 1985).

Tradicionalmente, uma das especificidades mais marcantes do processo de divisão do patrimônio familiar é dar a terra aos filhos homens, especialmente ao (s) sucessor (es) e recompensar as filhas com outros bens, principalmente com o enxoval, por ocasião do casamento. Esse padrão era imposto pelos pais e aceito pelos filhos e filhas como necessário para a continuidade da reprodução social do grupo familiar.

Mais recentemente, em razão dos problemas sucessórios que cercam a agricultura familiar, tais como: a desistência de muitos filhos e, principalmente das filhas, em seguir na ocupação paterna e estabelecer casamentos com filhos de agricultores; a demorada espera pela vontade paterna para transmitir o estabelecimento e; os próprios questionamentos em torno das formas da divisão propostas pelos pais dão uma nova dimensão à transmissão do patrimônio, com destaque para as formas de divisão e compensação das filhas. Considerando a situação específica das mulheres, a discussão envolve a possibilidade das mesmas serem ou não sucessoras e os bens ou

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compensações patrimoniais que cabem a elas atualmente quando lhes é negado à sucessão do estabelecimento.

Com base na dimensão exposta acima, o presente artigo discute os arranjos ou encaminhamentos em torno da transmissão do patrimônio elaborados pelos agricultores familiares, com foco nas diferentes formas de divisão e compensação dada às filhas.

Na composição do artigo, apresentase: Procedimentos metodológicos; Revisão bibliográfica sobre agricultura familiar; Revisão bibliográfica sobre as especificidades da transmissão do patrimônio na agricultura familiar, Análise das formas de divisão e compensação do patrimônio familiar das filhas com base na pesquisa realizada e considerações finais.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa é do tipo qualitativa e foi desenvolvida no primeiro trimestre de 2007, nos municípios de Pinhal Grande e Dona Francisca, ambos pertencentes à Quarta Colônia de Imigração Italiana – localizada da Região Central do Rio Grande do Sul. A escolha dos dois municípios - entre os nove que compõem a Quarta Colônia - teve como principal critério à representatividade da agricultura familiar.

Quanto a seleção dos agricultores, foram considerados os seguintes aspectos: 1) Ter pelo menos um (a) filho (a), independentemente do sexo; 2) Ter 50 anos ou mais. Esse recorte etário se justifica pelo fato da pesquisa centrarse em situações de transmissão de patrimônio definida ou encaminhada, tendo em vista que a literatura aponta que, na agricultura familiar, a transmissão do patrimônio é um processo tardio, ou seja, os pais encaminham ou realizam a transmissão do patrimônio quando atingem idade mais avançada. Com isso, foi necessário estabelecer um recorte etário para evitar o risco de entrevistarmos agricultores jovens ou recémestabelecidos ou mesmo com filhos pequenos, o que não permitiria tratarmos do tema da transmissão do patrimônio. Neste sentido, a exemplo do trabalho realizado por Champagne (1986a, b), optouse por entrevistar agricultores acima de 50 anos.

No total foram entrevistados 26 agricultores familiares com sucessão, ou seja, agricultores que apresentam a perspectiva de ter um filho disposto a permanecer no estabelecimento para dar continuidade. Além dos agricultores - chefes dos

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estabelecimentos -, foram entrevistadas as esposas e em alguns casos também as filhas. Os principais questionamentos fazem referência a quem fica com o estabelecimento e a forma de divisão do patrimônio entre os filhos (sucessores e não sucessores), considerando mais especificamente a situação das filhas.

1 A DINÂMICA DA TRANSMISSÃO DO PATRIMÔNIO NA AGRICULTURA FAMILIAR
1. 1 Agricultura Familiar

No Brasil, o debate e o crescente fomento à agricultura familiar ganharam visibilidade política e social na década de 1990, com a implantação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF. Este é um programa de políticas públicas específicas para os agricultores familiares iniciado em 1995, pela pressão política dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e demais movimentos sociais ligadas ao campo, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura - CONTAG.

A implantação do PRONAF demarca, pela primeira vez no país, a destinação de recursos econômicos financiados pelo Estado para os agricultores enquadrados4 nesse segmento, com o intuito de fortalecer a produção agrícola e a viabilidade econômica. Além desse objetivo, o PRONAF trouxe o reconhecimento social de uma “nova” categoria5

no meio rural brasileiro: agricultor familiar.

Na caracterização e conceituação do termo agricultura familiar Abramovay (1998), considera três atributos importantes: gestão, propriedade e trabalho familiar proveniente de indivíduos que mantêm entre si laços de sangue ou de casamento.

Na concepção de Wanderley (2001), a agricultura familiar é entendida como aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção (produzindo para seu consumo e para o mercado), assume o trabalho no estabelecimento produtivo. A conjugação dessas características, ou seja, o fato de uma estrutura produtiva associar famíliaproduçãotrabalho tem conseqüências fundamentais na forma como ela

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age econômica e socialmente. Uma das conseqüências dessa forma de agir é atender às necessidades do grupo doméstico e à reprodução das gerações subseqüentes. Conforme Wanderley (2001, p. 24), através da conjugação desses dois objetivos, resultam as características fundamentais da agricultura familiar, “a especificidade do processo, seu sistema de produção e a centralidade da constituição do patrimônio familiar”.

O trabalho de Gasson e Errington (1993) desenvolve uma definição mais detalhada sobre a agricultura familiar, conciliando as relações entre o estabelecimento ou a propriedade e o grupo doméstico, e as características existentes dos estabelecimentos atualmente, tanto as de cunho mais empresarial como as familiares. O estudo define as características, levando em conta fatores como a natureza da própria ocupação, do trabalho dos membros e a combinação entre a administração e controle dos negócios do estabelecimento, além do processo de sucessão. No total, são definidas seis características: a) A gestão encontrase nas mãos dos proprietários dos estabelecimentos; b) Os proprietários do empreendimento estão ligados entre si por laços de parentesco; c) É responsabilidade de todos os membros da família prover capital para o empreendimento; d) O trabalho é feito pela família; e) O patrimônio e a gestão do estabelecimento são repassados de geração a geração; f) Os membros da família vivem no estabelecimento.

Na tentativa de caracterizar a agricultura familiar dentro da economia capitalista, Friedmann (1986), citada por Gasson e Errington (1993, p. 17), dá maior ênfase às relações internas entre os membros da família, ao afirmar existirem duas questões específicas dos agricultores familiares. A primeira trata da organização da produção através das relações de parentesco com uma divisão do trabalho por sexo e idade, tendo em vista a realização do trabalho pelos...

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