O campo da ciência da informação e o patrimônio cultural: reflexões iniciais para novas discussões sobre os limites da área

AutorWillian Eduardo Righini de Souza, Giulia Crippa
CargoUniversidade de São Paulo - Professora doutora do curso de Ciência da Informação e Documentação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP)
Páginas1-23

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Willian Eduardo Righini de Souza

Universidade de São Paulo wrighini@usp.br

Giulia Crippa

Professora doutora do curso de Ciência da Informação e Documentação da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) giuliac@ffclrp.usp.br

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1 Introdução

Nosso questionamento, neste artigo, é discutir em que medida o tema do patrimônio cultural está inserido na Ciência da Informação (CI). Para isto, utilizamos o conceito de campo apresentado por Pierre Bourdieu e partimos do pressuposto que o campo da CI se configura pelo “universo no qual estão inseridos os agentes e instituições que produzem ou difundem” (BOURDIEU, 2004, 20) a Ciência da Informação.

Para Buckland (1997; 2009), a cultura material e até mesmo performances podem ser consideradas documentos e, portanto, devem ser incluídas entre os objetos de estudo da Ciência da Informação. Para ele, se um documento pode (ou não) ser armazenado é um interesse técnico e processual, mas não é isso que define um documento. Um documento, segundo Buckland (2009), é algo que nos ensina ou informa sobre alguma coisa. De qualquer forma, o autor não rejeita concepções discordantes, pois, segundo ele, “com diferentes definições, podemos alcançar interessantes idéias” (BUCKLAND, 2009), ao contrário do que aconteceria se considerássemos que existe apenas uma visão correta.

Para nossa discussão, tornase necessário conhecer o que é produzido sobre patrimônio cultural nas publicações consideradas da CI, saber quem são os agentes que falam do patrimônio cultural e supostamente estão inseridos no campo, refletir sobre a visibilidade e prestígio destes agentes, a inserção da pesquisa sobre patrimônio cultural nas instituições que trabalham com a CI e a presença do patrimônio cultural nos principais eventos.

Antes, para uma contextualização, explicitação do nosso referencial teórico e para facilitar o próprio posicionamento do leitor sobre o assunto, apontamos algumas das principais, e de certo modo gerais, definições, encontradas na literatura, de Ciência da Informação e Patrimônio Cultural.

2 A ciência da informação

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De modo geral, a origem da CI é datada após a Segunda Guerra Mundial. Segundo Oliveira (2005, p. 9-10), ela é um campo interdisciplinar que nasceu da revolução científica e técnica que marcou este período. Tem como disciplinas fundadoras a Documentação, com seu arcabouço teórico, e a Recuperação da Informação, que desenvolveu sistemas automatizados. Seu surgimento seria uma resposta à necessidade de “reunir, organizar e tornar acessível o conhecimento cultural, científico e tecnológico produzido em todo o mundo” (OLIVEIRA, 2005,

Concepção similar é a de Saracevic (1995; 1996), que, apesar de enfatizar sua interdisciplinaridade, principalmente pelas relações estabelecidas com a Biblioteconomia, Ciência da Computação, Ciência Cognitiva e Comunicação, aponta como eixo central da CI a recuperação da informação. Tal ponto de vista é sustentado pela necessidade de organizar e recuperar a informação a partir da “explosão informacional” observada após a Segunda Guerra Mundial.

Le Coadic (2004, p. 115) é mais específico e data sua origem em 1968, quando nasceu a primeira grande sociedade científica dos Estados Unidos, a American Society for Information Science (ASIS). Para ele (2004, p. 25), a CI é uma ciência social rigorosa que “tem por objeto o estudo das propriedades gerais da informação (natureza, gênese, efeitos), e a análise de seus processos de construção, comunicação e uso”, que também é chamado de “ciclo da informação”. Assim como Oliveira e Saracevic, Le Coadic (2004, p. 115) destaca sua interdisciplinaridade, pois envolveria ciências matemáticas e físicas, bem como ciências sociais e humanas.

Ao contrário dos exemplos citados, alguns autores preferem uma abordagem mais histórica do desenvolvimento da CI, que aponte as condições anteriores que permitiram sua institucionalização no pósguerra, como é o caso de Rayward (1997). Desta forma, o autor relaciona a história da CI com a criação, em 1895, do Instituto Internacional de Bibliografia, posteriormente denominado Federação Internacional de Documentação (FID). Sua tese é que, apesar do termo “Ciência da Informação” ter sido usado pela primeira vez apenas em 1955, o Instituto foi essencial para o seu desenvolvimento, pois a CI é, ou parte dela, uma extensão da Documentação. Revisando as concepções de Paul Otlet, Rayward (1997) verifica como as idéias deste autor estão relacionadas com a CI atual, a ponto de concluir que antes de conhecermos o

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desenvolvimento do campo ao longo do século XX, principalmente nos EUA, devemos retornar a Bélgica do século XIX (RAYWARD, 1997, p. 289-290).

Smit (1993; 2003) enxerga a CI formada de três interfaces ou “três marias”: a Biblioteconomia, a Arquivologia e a Museologia. Para a autora, as três áreas são irmãs na organização da informação, e utilizando o exemplo do documento audiovisual discute como elas compartilham “objetivos próximos, técnicas semelhantes e as mesmas condições adversas” (SMIT, 1993, p. 81). No entanto, observa um isolacionismo em cada interface, que não unem seus esforços e até mesmo se ignoram. Esta posição se baseia no fato de que cada interface possui “bibliografia própria, congressos e associações próprios, impedindo o fluxo e a troca de informações e, principalmente, impedindo que todos se vejam num contexto maior” (SMIT, 2003). Deste modo, estas divisões internas da CI é mais um aspecto da dificuldade de situar um assunto no campo, pois há diferenças e discordâncias na leitura da área inclusive entre aqueles que já estão inseridos. Apesar de nosso interesse ser o contexto brasileiro, justificamos a citação de autores estrangeiros, pois estes fazem parte do referencial teórico básico das instituições e profissionais da área. Portanto, independente da nacionalidade dos autores, esta introdução sobre a CI apresenta o que é lido e divulgado no Brasil como a origem e fundamentos do campo.

A partir destas referências iniciais, podese entender que os estudos sobre recuperação da informação fazem parte do capital comum existente na CI. Instituições como bibliotecas, arquivos e museus, seu funcionamento, as relações com o público, assim como o acervo que estes contêm também são objetos de pesquisa deste campo. As tecnologias são cada vez mais discutidas como instrumento para o acesso a informação, e como podemos verificar, desde os primeiros estudos, como discutido por Saracevic (1995; 1996), elas se apresentam com grande importância para os teóricos da CI. Em trabalho de Mueller e Pecegueiro (2001) sobre os artigos publicados no periódico Ciência da Informação durante a década de 1990, verificouse que o tema mais freqüente foi “entrada, tratamento, armazenamento, recuperação e disseminação da informação”, totalizando 30,7% dos artigos, logo seguido por “estudo de usuário, transferência e usos da informação e uso da biblioteca”, com 29,87% do conjunto, o que levou as autoras a concluir que as principais preocupações abordadas neste decênio foram o “tratamento da informação e a gerência das instituições” (MUELLER; PECEGUEIRO, 2001, p. 50).

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3 Patrimônio cultural

Para compreendermos o que é considerado patrimônio cultural no país, primeiramente devemos regressar ao Movimento Modernista brasileiro. Foram os intelectuais deste movimento, como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e, principalmente, Mário de Andrade, que começaram a questionar, de forma sistemática, a nossa identidade, o que nos aproxima e diferencia como brasileiros. Neste contexto da década de 1920, Rodrigo Melo Franco de Andrade (futuro diretor da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN), Lúcio Costa e Mário de Andrade viajaram a Minas Gerais e entraram em contato com a arquitetura barroca, considerada a partir de então “o berço de uma civilização brasileira”, utilizando a expressão de Fonseca (2005,

Em 1936, o ministro Gustavo Capanema solicita a Mário de Andrade um anteprojeto para a proteção das obras nacionais, que depois de modificado pelo ministro e Rodrigo M. F. de Andrade, transformase em DecretoLei em 30 de novembro de 1937 e cria o SPHAN. Para o DecretoLei, o patrimônio histórico e artístico nacional é o

(...) conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937).

Como foi a arquitetura barroca que desencadeou esta preocupação com a preservação do patrimônio nacional e o instrumento estabelecido para preserválo, o tombamento, referiase somente a bens móveis e imóveis, não incluindo manifestações, crenças, culinária, etc., a área que mais se apropriou deste campo de estudo foi a Arquitetura.

Somente em 1975, mudanças mais significativas começaram a ocorrer. Aloísio Magalhães, então diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e equipe cria o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) para estudar uma nova política para o patrimônio cultural e desenvolver projetos culturais ainda pouco explorados, como o artesanato,

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levantamentos sócioculturais, história da tecnologia e da ciência no Brasil e levantamento de documentação sobre o país.

Esta mudança de perspectiva é verificada na Constituição Federal de 1988, que define o patrimônio cultural como

(...) os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I. as formas de expressão; II. os modos de criar, fazer e viver; III. as criações científicas...

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