Delinquência patronal, repressão e reparação

AutorWilson Ramos Filho
Páginas47-69

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1. Introdução

Passou quase despercebido a boa parte de doutrina trabalhista, e de seus operadores, significativa alteração paradigmática no tratamento de algumas condutas de empregadores que violam a legislação, as quais, desde então, passaram a ser consideradas como práticas criminosas.

O ilícito trabalhista sempre foi, eufemisticamente, considerado pela doutrina e pela jurisprudência como “descumprimento” ou como “inadimplemento” da lei ou do contrato, ao contrário da concepção adotada nos outros ramos do direito. Todavia, desde as mais recentes alterações havidas no Código Penal Brasileiro (CP), alguns ilícitos praticados por empregadores delinquentes1 passaram a ser considerados como crimes, tipificados como tal pela lei penal e, portanto, passíveis de repressão por parte do Estado.

A criminalização e a repressão a integrantes das classes dominantes é algo novo na história da República, razão pela qual talvez nem sempre tenham sido bem recebidas por parte de certos meios de comunicação e órgãos de imprensa. Mas não foi apenas no campo da investigação criminal que houve uma mudança significativa2. Também no âmbito normativo, fundamentalmente nos últimos seis anos, a legislação penal foi atualizada para considerar como crime algumas, poucas, condutas praticadas por integrantes das classes sociais mais favorecidas.

Muito embora sejam poucas tais alterações na lei penal o mero fato de criminalizar condutas de empregadores já se configura em significativa alteração paradigmática, o que talvez explique certa lenidade da Jurisdição (seja Criminal, seja Trabalhista) na aplicação de tais leis a casos concretos.

De fato, se é certo que o Direito Penal, conforme já demonstrou a Criminologia, não foi concebido para reprimir integrantes das elites (BARATTA, 2002), não é menos certo que o Direito do Trabalho, o mais capitalista dentre os ramos do direito3, também não foi

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concebido para fundamentar atuações do ramo da Justiça encarregado de sua aplicação no sentido de assegurar-lhe eficácia máxima. Nem um dos dois ramos foi concebido para isso. Não obstante, e essa talvez seja a maior virtude do Estado Democrático de Direito, uma vez estabelecidos como “direito posto” (GRAU, 2008) seus dispositivos tornam-se de aplicação obrigatória e esta é a principal reivindicação desse artigo.

Para tanto, depois de apresentar de modo muito resumido as principais alterações paradigmáticas ocorridas na legislação penal (item II) se aprofundará o estudo do impacto de algumas delas no direito brasileiro (itens III, IV e V), para ao final sustentar uma maior eficácia para tais inovações legislativas, não como fim em si mesma, mas como instrumento de uma maior eficácia da legislação trabalhista.

2. Alterações na legislação penal que criminalizam práticas de delinquência patronal

Para uma melhor compreensão do argumento central utilizado, dispõem-se as alterações legislativas segundo critério cronológico, ou seja, serão ordenadas pelas datas de sua entrada em vigência, e que tiveram por antecedente lógico a ampliação nas penas do crime de descumprimento da legislação trabalhista.

De fato, a Lei n. 9.777, de 29.12.1998, alterou a redação do art. 2034 do CP, ampliando as penas da figura delituosa do crime de frustração de direito assegurado pela legislação trabalhista visando a por intermédio de tal medida, a ampliar-lhe a eficácia.

A conduta tipificada como crime consiste em fraudar5, ou seja, em privar o empregado de direitos fixados pela legislação trabalhista, sonegar-lhe prerrogativas chanceladas em lei6, que tem como sujeito ativo preponderante7 o empregador e como vítima o empregado. Como tanto empregados quanto empregadores podem se apresentar como

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sujeitos ativos de crimes no âmbito de uma relação de trabalho optou-se por designar genericamente como “delinquência patronal” todos os crimes praticados por empregadores que tenham como vítimas seus empregados, no âmbito da relação de emprego.

Trata-se de previsão de crime simples, comum, doloso, material que tutela todo e qualquer direito definido como tal pela legislação trabalhista (portanto, norma penal em branco), que admite também a ameaça, como vem entendendo a jurisdição criminal8 e que se materializa até mesmo quando a fraude se refere à falsificação de documentos, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal9.

Todavia, muito embora a Justiça Especializada detecte com frequência ocorrência de fraudes que frustram direitos trabalhistas, tal dispositivo legal recebe ainda débil utilização10 por parte dos magistrados trabalhistas, no sentido de movimentar a Justiça Criminal comum, competente para conhecer e julgar tais feitos11.

Ou seja, muito embora ainda que em 1998 tenha sido ampliada a pena para o empregador que sonegasse direitos trabalhistas ao empregado, somente em 11 de dezembro de 2003 assegurou-se a primeira grande alteração da legislação penal, mediante Lei n.
10.803, que alterou os artigos relativos à redução à condição análoga à de escravo, principalmente no que se refere ao art. 149 do CP12, e que será objeto de maior detalhamento nos itens que se seguem.

Comemorou-se a segunda grande alteração paradigmática com a entrada em vigor da Lei n. 11.106, de 2005, dedicada à repressão do tráfico de pessoas, tipificando como praticante de crime13 aquele que promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território

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nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro, também aumentando a pena no caso do emprego de violência, grave ameaça ou fraude e multa, além da pena correspondente à violência. Também foi tipificado o tráfico interno de pessoas, com a penalização daquele que promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição14. Registre-se que a Lei n.
11.106 substitui o termo “mulher” por “pessoa”, conferindo maior amplitude à acepção, muito embora tenha ainda deixado de fora da proteção outras formas de tráfico de pessoas, como aquelas em que as vítimas são traficadas para adoção, para transplante de órgãos ou para trabalho em condição análoga à de escravo ou mediante servidão (SANTA CATARINA, 2008).

A terceira grande alteração legislativa no âmbito penal vem com a chamada Lei Maria da Penha15, de 7 de agosto de 2006, que cria mecanismos para prevenir e reprimir a violência doméstica, assegurando à mulher condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, entendido o “ambiente familiar” como seu entorno socioeconomico-cultural que não se restringe ao espaço existente “do portão da residência para dentro”, podendo em alguns casos ser ampliado para nele fazer incluir, dependendo da condição fática, o ambiente de trabalho, e não apenas nos casos de trabalho doméstico16 ou de trabalho prestado em domicílio17.

Essas alterações na legislação penal lembradas acima, se bem sopesadas, podem subsidiar aos operadores do Direito do Trabalho socorrendo-os de adequados instrumentos que lhes assegurem mais ampla efetividade da legislação propriamente trabalhista.

No tópico seguinte se apresenta uma classificação teórica para o que se pode considerar atualmente como trabalho em condições análogas à de escravo e o enquadramento que a lei penal confere a tais condutas. Antes disso, contudo, impõe-se a elaboração de uma resenha, ainda que rápida, para a exposição de algumas das tentativas — nem sempre bem-sucedidas — de explicação para o fato de remanescerem relações de trabalho pré-capitalistas18 contemporaneamente ao capitalismo mais avançado em sua fase monopolista e globalizada.

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Parte das explicações responsabiliza o Estado pela ocorrência do fenômeno que a imprensa denomina genericamente pelo significante de “escravidão contemporânea”, atribuindo a instalação de tal quadro à ausência de fiscalização/repressão por parte de seus agentes (DRTs, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho e outros) incumbidos constitucionalmente de velar pelas relações de trabalho dignas, seja no campo, seja nas cidades. Tais “explicações”, que descambam para a incriminação do próprio Estado pela ocorrência de trabalho escravo, provêm de polos ideológicos potencialmente antagônicos: uma vertente de corte nitidamente liberal ou mesmo neoliberal termina por invisibilizar a figura do delinquente (empregador que submete seus empregados a tais condições de trabalho) por detrás da crítica estadofóbica19; outra vertente, que se apresenta como “crítica” ou “progressista”, na ânsia de reivindicar “mais Estado” (mais fiscalização, mais inter-venção, mais aparelhamento dos órgãos) também acaba tornando invisíveis os verdadeiros agentes, praticantes do crime, ao focar sua análise na “falta de fiscalização” estatal sobre tais relações de trabalho, esvaecendo a responsabilidade dos reais agentes da ação delituosa, dos verdadeiros praticantes do crime, eclipsando-os pela crítica genérica enviezando o foco de sua análise deixando, como sempre, inacessíveis e nunca perturbados os delinquentes concretamente considerados.

Outra perspectiva centra o problema na busca de explicações para tal remanescência em uma acanhada oferta de empregos20 que...

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