O pintor, o médico e a mulher: códigos visuais e de gênero na pintura de tema médico

AutorAna Paula Vosne Martins
Páginas107-123
Niterói, v. 10, n. 2, p. 107-123. sem. 2010 107
O PINTOR, O MÉDICO E A MULHER:
CÓDIGOS VISUAIS E DE GÊNERO
NA PINTURA DE TEMA MÉDICO
Ana Paula Vosne Martins
E-mail: ana_martins@uol.com.br
Resumo: Este artigo trata das relações en-
tre imagens pictóricas e o conhecimento
médico-científico entre o século XIX e inícios
do XX, tomando como referência pinturas
sobre temas médicos n as quais o corpo
femin ino é represe ntado . Ma is do que
homenagem ao conhecimento médico e à
destreza dos cirurgiões, essas imagens são
reveladoras de um campo entrecruzado de
diferentes e contrastantes representações
do gênero para as quais o corpo feminino
deu sentido e significado simbólico.
Palavras-chave: corpo; medicina; pintura
108 Niterói, v. 10, n. 2, p. 107-123, 1. sem. 2010
Quando tomo o corpo do Outro como objeto de arte
– ainda que não o coloque a par –
não o condeno à morte;
delibero sobre sua morte e o imobilizo.
Jean-Pierre Jeudy (2002)
A história da medicina é uma especialidade muito respeitada e conta com
várias publicações e eventos internacionais arregimentando profissionais da
história e também médicos que atuam como historiadores amadores. Em vá-
rios países, encontram-se associações e museus que visam preservar a memória
da prática e do conhecimento médicos, num esforço não só de preservação,
mas de construção da memória e de um sentido para o passado articulando-o
coerentemente com o presente. Talvez nenhuma outra profissão tenha tama-
nha reverência pela história e pela memória, pois parece ser consensual que a
medicina é um exemplo notável do esforço humano na superação da dor, do
sofrimento e da ignorância, superação esta que resulta, por sua vez, da ação,
da inteligência e do humanismo dos homens que no passado não se furtaram
a superar as adversidades e os obstáculos para salvar vidas, para curar doenças
e amenizar os sofrimentos humanos.
Essa imagem heróica e salvadora da medicina e de seus praticantes – os mé-
dicos – encontrou no século XIX a sua melhor elaboração, tendo em vista que data
dessa época a construção de museus ou de espaços de preservação da memória
da medicina em diferentes países europeus e americanos. Também é importante
salientar que o século XIX foi palco da constituição da disciplina histórica, estrutu-
rada como um saber especializado, com metodologia e discurso próprios, exercida,
da mesma forma que a medicina, por homens sábios e respeitáveis. (SMITH, 2003).
Neste artigo, vamos tratar de imagens associadas ao trabalho da memória,
em particular da imagem heróica e salvadora dos médicos, bem como de outras
imagens de forte simbolismo de gênero, a ela articuladas. Mais do que analisar
as pinturas de temas médicos como indícios daquele esforço de preservação da
memória, pretendemos compreender como a categoria gênero operou simbolica-
mente nesse processo. Ao mirar na memória, encontramos produções imagéticas
que se configuram como um campo entrecruzado de diferentes e contrastantes
representações objetivadas, e ao mesmo tempo ancoradas no binarismo do
gênero, para as quais o corpo feminino deu sentido e significado simbólico.
Arte e medicina
Na Academia Nacional de Medicina e no Memorial da Faculdade de Medi-
cina da Bahia, ambos lugares da memória, existem duas reproduções da figura
heróica e salvadora do médico. Estas representações são, respectivamente,

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