Pintura, memória e história: a pintura histórica e a construção de uma memória nacional

AutorIsis Pimentel de Castro
Páginas336-352

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A criação de uma arte brasileira

Os campos* artístico e historiográfico alcançaram tal grau de autonomização, que raros profissionais conseguem circular com desenvoltura nesses dois espaços. O processo de especialização, intensificado no último século, dividiu em disciplinas saberes que até então não se reconheciam como distintos entre si. A autoridade conferida ao especialista naturalizou um isolamento entre áreas de conhecimento que nem sempre foram autônomas, como, por exemplo, a arte e a história. Nesse sentido, a própria concepção de arte brasileira no século XIX é rica, para se pensar a relação entre essas duas esferas.

O próprio termo arte brasileira somente pôde ser pensado nos anos 1800, concomitantemente ao processo de construção de uma identidade nacional. O primeiro autor a se dedicar ao estabelecimento de uma história da arte brasileira foi Manuel de Araújo Porto- Alegre. Com vida intelectual intensa, assumiu posições de destaque nas duas instituições mais importantes do Império: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), lugares de produção de símbolos nacionais, que mantinham diálogo intenso entre suas produções.

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Porto-Alegre foi um dos primeiros membros do Instituto Histórico, assumiu a função de orador da instituição por quase 14 anos, até tornar-se secretário e vice-presidente da casa. Na AIBA, além de ter obtido formação de pintor histórico, ocupou o cargo de professor de pintura histórica, entre os anos de 1837 e 1848. Somente em 1854, assumiu a direção da academia, sendo o primeiro brasileiro a alcançar essa posição. Durante sua administração, iniciou ampla mudança estrutural no ensino artístico da instituição, conhecida como Reforma Pedreira.

Porto-Alegre pode ser tomado como exemplo da inexistência de campos de conhecimento totalmente autônomos no século XIX, pois, além de pintor histórico e professor, foi arquiteto, caricaturista e escritor. É considerado o fundador da história e da crítica de arte brasileira, responsável pela edificação da idéia de “arte brasileira” no século XIX. Criou e dirigiu alguns dos principais periódicos da época, como a revistas Niterói (1836), Minerva Brasiliense (1843), Lanterna Mágica (1844) e Guanabara (1849). Em todas suas atividades, buscou imprimir na produção cultural oitocentista uma marca nacional e investiu na criação de uma cultura brasileira. Em suas palavras:

“A arte não progride, não forma escola, não adquire um caráter de superioridade e de permanência enquanto se não nacionaliza: apressar este passo é conquistar o futuro, é encurtar o tempo” (PORTO-ALEGRE, 1850, p.141).

Essa marca nacionalista na obra de Porto-Alegre também pode ser observada no poema Colombo, escrito no ano de 1866. Neste poema, assim como nos demais artigos que escreveria ao longo de sua vida, enfatiza que somente foi possível pensar numa nacionalidade brasileira graças à ação civilizatória dos colonizadores europeus, responsáveis por trazer o progresso e as luzes aos trópicos. Somente à medida que o País se igualasse às nações civilizadas, seria possível pensar em arte brasileira.

Desde sua atuação como crítico de arte, Porto-Alegre procurou unir história e arte. Essa união pode ser pensada por dois caminhos. O primeiro centra-se na própria concepção de “obra de arte”, que deveria ser antes de tudo uma obra histórica, não somente por pertencer a seu tempo,Page 338mas principalmente porque caberia à história o papel de civilizar os homens por meio dos exemplos do passado. A arte, a serviço da história, tornava-se instrumento fecundo ao esclarecimento e ao progresso da humanidade. O segundo entende que a história possibilita estabelecer uma linha evolutiva no tempo, por meio da criação de marcos históricos. A construção de um passado artístico glorioso tornava possível o estabelecimento de uma evolução artística, necessária à edificação de uma “arte brasileira”, uma vez que, somente quando fosse criado um marco fundador para a produção artística do País, poderia ser instituída uma linha progressiva no tempo, que tornaria o presente “habilitado” para o desenvolvimento das belas artes. Essa linha evolutiva começava com as primeiras peças confeccionadas no período colonial e culminava, obviamente, com a produção dos artistas do Império.

Empenhado na tarefa de estabelecer as origens da produção artística brasileira, Porto-Alegre criou o que até hoje se chama Escola Fluminense de Pintura, termo empregado pela primeira vez no ano de 1841, em um ensaio intitulado Sobre a antiga escola de pintura fluminense (PORTO-ALEGRE, 1841). Esse ensaio foi o primeiro esforço para sistematizar o passado artístico brasileiro, e é reconhecido como o artigo fundador de uma história da arte brasileira. Em sua narrativa, o autor ocultou tudo aquilo que pudesse colocar em xeque o emprego do termo “escola fluminense”. A existência de poucas referências cronológicas serve, justamente, para evitar o questionamento do estilo, já que os artistas que o compuseram nem ao menos tiveram formação artística comum.

Ao elevar os artífices setecentistas ao status de artistas, Porto- Alegre fundou uma arte brasileira antes mesmo da chegada da Missão Artística Francesa. Sublinhou, dessa forma, a genuína vocação artística nacional. Não eram raros os momentos em que igualava os artistas da Escola Fluminense aos grandes nomes da arte européia, como é possível ver no texto seguinte:

Valentim elevou a arte borromínica a um ponto tal, que rivaliza com as maravilhas de Versailles e a Capela Real de Dresda. [...] José de Oliveira é o Pozzo brasileiro [...]. José Maurício foi o homem que nasceu como Dante em uma época bárbara para a música (PORTO-ALEGRE, 1845, p.241-248).

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Os artífices setecentistas eram em sua maioria negros ou mulatos. Igualar negros escravos, mulatos e forros aos “gênios” da arte européia não aproxima o autor de uma postura abolicionista. Se, no passado, circunstancialmente, os artistas nacionais eram escravos ou forros, no presente, eles deveriam ser formados pela Academia de Belas Artes, única instituição capaz de dar-lhes a educação adequada. Ao fazer tal comparação, tinha como objetivo inserir a arte brasileira em uma tradição já consolidada (SQUEFF, 2003). A Europa servia de parâmetro no momento de criação de uma história da arte brasileira. Isso não significa pensar essa aproximação como uma “imitação”, pois seu intuito, ao construir um passado artístico glorioso, era colocar o jovem Império em consonância com as nações civilizadas.

O termo “arte brasileira” caberia às obras que preferencialmente representassem temáticas da história nacional, o que pressupunha a apropriação de elementos do passado para a construção de uma identidade que habilitasse os trópicos a comungar dos mesmos valores dos países europeus. Dessa forma, o estilo artístico deveria ser de inspiração européia, para marcar esse pertencimento junto às nações civilizadas, mas os motivos deveriam valorizar a paisagem e os feitos históricos do Império. Somente com a crise do sistema monárquico e o advento da República, essa concepção de arte foi modificada e fundada em novos termos, e a criação de técnicas e utilização de materiais genuinamente brasileiros foram valorizadas (ZÍLIO, 1997).

Uma concepção de arte tão distinta daquela naturalizada nos dias de hoje causa certo estranhamento, mas, para compreender a emergência desse conceito, faz-se necessário sublinhar o lugar da cultura histórica no século XIX. O Brasil oitocentista foi fundamentalmente marcado pelo que Carl Schorske (2000) chamou de um “pensar com a história”, que possibilitou não só o surgimento da História como disciplina, mas também a emergência de uma gama expressiva de produções relacionadas à história (BANN, 1995; GUIMARÃES, 2003). Podem-se citar como exemplos disso: a arquitetura, que por meio do neoclássico buscava resgatar a grandeza e serenidade das construções da Antigüidade; a significativa demanda por romances históricos; e, sobretudo, a visibilidade que as pinturas voltadas para a história...

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