O princípio da igualdade como técnica de efetivação dos direitos sociais? com destaque para os direitos do trabalho e previdenciário

AutorMarcus Orione Gonçalves Correia
Páginas70-84

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I Introdução — a igualdade como postulado indissociável da solidariedade

Temos, há algum tempo, desenvolvido um conceito de direito social que o considera em toda a sua abrangência. Partindo do extenso rol do art. 6º da Constituição Federal, temos conceituado os direitos sociais a partir da noção de hipossuficiência de status1. No entanto, como não desejamos nos estender em relação ao tema, devemos apenas sintetizar que o direito social permeia tanto as áreas do direito público, quanto do direito privado — não se constituindo em um terceiro gênero, no nosso entender. Daí a facilidade de se entender os exemplos que daremos a seguir em algumas áreas do público e do privado, inserindo-os na lógica dos direitos sociais. No entanto, como último tópico desta análise, tentaremos destacar a questão à luz mais especificamente dos direitos do trabalho e da seguridade social.

Antes, no entanto, façamos algumas observações propedêuticas, necessárias para o enfrentamento do tema.

No caso específico do contrato de trabalho, deve-se lembrar sempre de que no sistema capitalista, a igualdade vem sendo tratada mais na perspectiva apenas de que se está dando condições (uma suposta liberdade) ao trabalhador para vender a sua força de trabalho. Sem empecilhos de qualquer natureza, ele se colocaria na relação contratual — figura tipicamente liberal —, para poder vender esta sua mercadoria. Para a consolidação de uma lógica neoliberal, a figura do contrato é bem mais apropriada do que a da admissão da simples relação de trabalho. Aliás, não poucas são as tentativas de se mitigar o rigorismo desta figura e seus vícios de origem, como, por exemplo, a ideia de contratorealidade (DE LA CUEVA).

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Na perspectiva exposta por Pasukanis, mesmo a ideia de relação jurídica (ou ainda a de contrato-realidade) seria insuficiente para fazer superar as limitações que a abordagem legal das relações individuais é capaz de construir. Não possuindo qualquer poder sobre os meios de produção, mas sendo apenas detentor de um destes meios (a força de trabalho) e sequer o real proprietário da sua disponibilidade, o trabalhador jamais conseguiria, pelo direito individual do trabalho, uma justa retribuição contratual pela mais-valia. Como bem lembrado por Alcides Ribeiro Soares:

“Tudo sob o capitalismo se transforma em mercadoria, inclusive a força de trabalho. Sob o capitalismo, o trabalhador é livre, livre em dois sentidos: pode vender livremente sua força de trabalho, sua capacidade de trabalho, ao capitalista x, y ou z, e também porque, não possuindo meios de produção para produzir seus meios de subsistência, está disponível para ser submetido ao trabalho assalariado. Por outro lado, é necessário considerarmos que, na realidade, o trabalhador assalariado, por ter de vender sua força de trabalho à classe capitalista, vive subjugado a esta, e, conforme afirmativa marxiana de 1867, ‘a ilusão de sua independência se mantém pela mudança contínua dos seus patrões e com a ficção jurídica do contrato’. Cabe aqui, ainda, lembrarmo-nos de que por haver um contrato entre o trabalhador assalariado e o capitalista, a mais-valia — o valor criado durante a parte da jornada de trabalho que constitui o tempo excedente é expropriado gratuitamente pelo capita-lista — fica velada, escondida, deixando a aparência de que todo o trabalho é pago, quando, na realidade, existe aí o trabalho pago e o não pago”.2É clara à estrutura capitalista, assim, a necessidade de fazer afirmar a existência de um contrato individual do trabalho, já que se trata de uma forma de se conceber, pela perspectiva contratual, a ideia de autonomia (liberdade) para o ato de contratar. É interessante ressaltar, para o entendimento da idolatria da figura contratual, a seguinte passagem:

“Ora, durante muitos séculos, a dominação de classe pressupôs a existência de vínculos de subordinação pessoal, tornando o homem dependente de outro homem, não sendo ele livre para dispor de si próprio, não podendo oferecer a sua própria capacidade de trabalho como mercadoria, no mercado. A liberdade e a igualdade não reconhecidas, nem percebidas como ´necessárias` à condição humana. Então, a primeira observação que eu quero fazer é a respeito desse vínculo essencial que pode ser estabelecido entre a emergência da relação de capital e o surgimento das categorias da liberdade e da igualdade. É somente em um momento preciso da história, sob uma estrita determinação social, exatamente quando as relações de produção capita-listas vão se constituindo, que a liberdade e a igualdade aparecem como se fossem inerentes à própria natureza do homem. Por que essas categorias, por tanto tempo ignoradas, por tanto tempo negadas, agora se tornam imprescindíveis para a própria identificação da humanidade do homem? A emergência das categorias da liberdade e da igualdade faz com que o homem se transforme em um sujeito de direito; o

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homem — qualquer homem — passa a ser dotado da mesma capacidade jurídica, podendo realizar atos jurídicos, celebrar contratos. Uma vez investido de personali-dade, o homem, agora sujeito de direito, pode vender seus atributos, seus predicados, de tal sorte que podemos dizer que a liberdade do homem é o seu livre consentimento: o momento mais elevado da realização da liberdade é o momento em que o homem manifesta a sua vontade de dispor de si mesmo por tempo deter-minado através de uma troca de equivalentes”.3Cada vez mais, percebemos que há que se ter cuidado com estas categorias, quando analisadas à luz do direito. Ainda que admitida a estrutura contratual, tipicamente liberal, quando se prestigia a liberdade do trabalhador deve-se fazê-lo, na lógica do direito, de forma a desprendê-la da simples perspectiva de que sua força de trabalho é mera merca-doria. Devemos enfeixar sempre homem e sua força de trabalho no mesmo ambiente, para que a proteção jurídica não seja apenas proteção que leve em consideração a mercadoria contratada e não ao homem com a qual confunde. Logo, o direito individual do trabalho, por meio das suas diversas categorias, tem uma função não simples no mundo atual. Em pleno momento do discurso dos direitos humanos, deve-se aproveitar desta lógica para se fundir novamente homem e força de trabalho. A proteção à força de trabalho é a proteção ao homem-trabalhador e vice-versa. Logo, deve-se fugir de soluções simplistas que impliquem apenas o pagamento (pouco efetivo na lógica dos direitos humanos) da mercadoria, sem se lembrar do homem que esta oculta. Assim, parece-me que discussões envolvendo, por exemplo, adicionais de insalubridade e periculosidade, e sua incidência sobre valores ínfimos, mais atende a uma perspectiva de liberdade/igualdade que merece ser superada. A proteção deve-se fazer efetivamente ao homem trabalhador, sem se considerar apenas o valor (o desvalor, que é o que presenciamos atualmente) da mercadoria força-de-trabalho. Esta discussão é extremamente pertinente quando tratamos, por exemplo, de aspectos referentes à proteção da saúde do trabalhador e o ambiente de trabalho, aspectos mais importantes do que a admissão da existência de uma insuperável (nem sempre verdadeira) insalubridade e periculosidade, ocasionadas ao trabalhador, e pagas mediante adicionais.

Deve-se valorizar a solidariedade, como forma de se obter a verdadeira liberdade e igualdade. Igualdade e liberdade como construções burguesas devem ser superadas, sob pena de a relação contratual servir apenas ao processo indesejável de reificação do trabalhador. É claro que, na perspectiva capitalista, entendemos insuperável o tratamento da força de trabalho como mercadoria — sendo insuficiente mesmo a gramática dos direitos humanos. No entanto, para a superação deste modelo, faz-se útil, ainda, que toda e qualquer interpretação jurídica busque almejar a proteção efetiva do homem escondido atrás do contrato (ou relação) trabalhista. Há que se buscar o posicionamento do trabalhador como verdadeiro sujeito não apenas no momento em que coloca a mercadoria (força de trabalho) à disposição do empregador, mas em todos os instantes da relação de trabalho. Deve ser tido sempre como sujeito que não se desprende da sua parte da obrigação pactuada — prestar o trabalho, mediante o uso de sua força. Não há como se conseguir a

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solidariedade entre trabalhadores, sem que estes possam, ainda que nas relações individuais de trabalho, ser vistos como homens e não como coisas (mercadorias). Afinal, coisas não são solidárias; homens, sim podem ser solidários. Logo, cada interpretação jurídica no plano das relações individuais do trabalho se faz importante para devolver ao homem a sua dimensão humana, auxiliando para que se possa afastá-lo do processo de reificação em que está envolto e contribuir para a otimização da consciência de classe.

Gostaríamos de ressaltar já inicialmente que é sob os influxos destas bases que procuraremos levantar algumas poucas questões a respeito da igualdade no âmbito dos direitos que mais diretamente importam aos trabalhadores na atualidade: os direitos sociais (com destaque para os direitos previdenciário e do trabalho).

Portanto, já de início tentamos mostrar a insuficiência atual da noção de igualdade, quando analisada de forma isolada. Ressaltamos desde já que a igualdade somente ganhará dimensão como técnica de efetivação dos direitos sociais, quando for vislumbrada sob a lente da solidariedade. Caso contrário, acreditamos que poderá dar ensejo à visão liberal acima rechaçada.

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