O estado plurinacional e o movimento indígena no equador: o projeto político da CONAIE

AutorAdilson Amorim De Sousa
CargoAdilson Amorim de Sousa é mestre em História (Universidade Federal do Espírito Santo) e professor assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Do mesmo Autor, ver, com Edinalva Padre Aguiar, 'José Gomes Novaes: vida e ação política' (Cadernos do CEAS, 204: 65-87. Salvador, Centro de Estudos e Ação Social, mar.-abr., 2003). ...
Páginas47-63
O ESTADO PLURINACIONAL E O MOVIMENTO INDÍGENA NO EQUADOR:
O PROJETO POLÍTICO DA CONAIE
ADILSON AMORIM DE SOUSA *
1. A CONAIE E O LEVANTE INDÍGENA DE 1990
Nos meses de maio e junho de 1990 o movimento indígena organizado no
Equador realizou, em vários cantos do território nacional, a maior mobilização
político-social já ocorrida na história recente daquele país. O Levante Indígena
de Inti Raymi, como ficou conhecido, apesar de contar com apoio de outras
organizações sociais, foi protagonizado e coordenado pela Confederação de
Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) que, em assembléia realizada
no final do mês de abril, aprovou resolução convocando a população indígena
e camponesa do Estado para realizar manifestações de protesto contra a
situação vivida pelos grupos subalternos do país, denunciando a situação de
exploração e opressão por que passavam as comunidades indígenas, além de
exigir que o Estado equatoriano tomasse medidas imediatas para o
atendimento de suas reivindicações.
O Levante ocorreu numa conjuntura interna específica: o Equador vivenciava
uma crise econômica profunda – fruto de sua histórica dependência estrutural
e do aumento de seu endividamento externo –, agravada, nos últimos anos,
pela adoção de políticas neoliberais que trouxeram conseqüências ainda mais
danosas para a grande maioria da população equatoriana, como o aumento do
desemprego, a queda na renda dos trabalhadores e o aumento da pobreza,
que atingiu patamares alarmantes. Apesar da aparente fragilidade do
movimento sindical, atingido por mudanças provocadas pelas políticas de
ajuste liberais, foram organizados vários protestos sociais, que provocaram
uma instabilidade política constante e a queda dos índices de aceitação
popular dos governos. Externamente, o período era também de crise: as
mudanças verificadas no Leste Europeu ampliaram a crise da esquerda e do
chamado socialismo real e, com ela, das ideologias surgidas no final do século
XIX que norteavam a atuação de grande parte dos movimentos sociais e
políticos do mundo. Nesse contexto, as manifestações indígenas causaram
espanto e perplexidade, despertando de imediato a curiosidade da opinião
pública internacional e o interesse do mundo acadêmico e político pelo estudo
e compreensão desse fenômeno.
Embora decidido apenas dois meses antes dos protestos – fator que dificultou
a organização e mobilização das entidades e comunidades afiliadas à Conaie
–, o Levante se transformou numa grande manifestação de força e protesto
por parte do movimento indígena que, baseado em uma estratégia
descentralizada de ação, conseguiu, durante alguns dias, paralisar as
principais cidades e províncias do país, para surpresa não somente das elites
políticas como também de outros setores sociais descrentes na capacidade de
mobilização desse sujeito social, o movimento indígena, visto de forma
discriminatória e considerado incapaz de conduzir, de forma autônoma, seu
processo de luta. O Levante provocou na sociedade equatoriana a
“descoberta” de um ator social e político até então, em parte, desconhecido,
pois os indígenas do Equador, ainda que compusessem um dos segmentos
mais significativo da população, se defrontavam com uma estrutura de poder
que os excluíam da possibilidade de acesso aos espaços e instituições de
participação e decisão políticas e que os consideravam um obstáculo para a
caminhada rumo à modernidade e ao desenvolvimento nacional.
2. ESTRATÉGIAS DE AÇÃO
Iniciado em 28 de maio de 1990, com a ocupação pacífica, por parte de um
grupo de índios, da Igreja de Santo Domingo, o movimento aos poucos foi se
espalhando para outras regiões do Equador, assumindo diversos graus de
intensidade, bem como formas de expressões diferenciadas, tais como
ocupação de órgãos públicos, interdição de estradas centrais, paralisação dos
transportes (o que gerou o bloqueio parcial do país e, inclusive, o
desabastecimento em várias de suas regiões), ocupação de praças e ruas das
capitais e principais cidades das províncias, ocupação de fazendas
acompanhada da exigência de sua desapropriação, entre outras. As
manifestações priorizaram formas pacíficas e festivas de expressão, com
cânticos, danças típicas e a ostentação de símbolos indígenas, como ponchos,
sombreiros e, principalmente, a Wipala, que passou a ser a bandeira-símbolo
do movimento indígena. Contudo, em algumas localidades as manifestações
transcorreram num clima tenso, em função da repressão, muitas vezes
violenta, do Exército.
Apesar da ocorrência de manifestações autônomas e espontâneas de
protestos, o Levante foi majoritariamente organizado e coordenado pela
Conaie, que se converteu no elemento aglutinador e articulador das
reivindicações e propostas do conjunto das populações indígenas e na
instância encarregada de estruturar e expressar o discurso oficial do
movimento. Ela pôs em prática uma estratégia de ação que, num primeiro
momento, combinou ações de massa com o diálogo aberto e direto com os
representantes do poder central. Em momento posterior, procurou estabelecer
um estado de “mobilização permanente” que, segundo os dirigentes indígenas,
deveria possibilitar a superação do caráter episódico dos acontecimentos,
apontar para novas manifestações – na hipótese de fracasso nas negociações
e, mediante a demonstração de força e pressão política, colocar o debate
sobre as questões indígenas em âmbito nacional, superando as tentativas
estatais de limitar suas demandas a questões pontuais e regionais.
As lideranças indígenas do movimento se preocuparam, também, em
estabelecer uma relação de continuidade entre o Levante e a história de luta
do movimento indígena. Em sintonia com tal preocupação, o Levante foi
interpretado não como um acontecimento estanque, isolado e esporádico, mas
como parte do processo mais amplo de história da resistência indígena,
caracterizada por inúmeros conflitos ao longo da história do país. A Conaie,
porém, foi ainda mais longe, e procurou não apenas vincular o Levante à
história da resistência indígena no Equador mas também apreendê-lo como
uma reação de todos os grupos sociais subalternos frente a um sistema de
discriminação e opressão perpetuado graças às estruturas gerais do Estado

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