A legislação que impacta a política urbana: conflitos e diálogo

AutorMarlene de Paula Pereira - Angela Moulin Penalva
CargoDoutora e pós- doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). - Mestre em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Especialização em Direito Agrário e Ambiental pela Universidade Federal de Viçosa
Páginas145-169

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INTRODUÇÃO

Com o aumento da população urbana, das relações interurbanas e da demanda por moradia e serviços, as cidades brasileiras passaram a enfrentar problemas cada vez maiores, isto é, que ultrapassam os limites territoriais do município.

A solução para problemas de tais proporções também precisa ser ampla. No entanto, obstáculos de diversas ordens inviabilizam medidas conjuntas. Os conflitos vão desde as competências dos entes federativos, dispostas na Constituição Federal, que não são bem definidas, passando por contradições observadas entre as leis que tratam das temáticas urbana e ambiental, chegando a empecilhos decorrentes do modelo federativo adotado pelo Brasil.

Uma competição observada entre os entes, existente principalmente em razão da escassez de recursos para implementar suas competências formais, vem acarretando um „jogo de empurra‟ extremamente prejudicial à coletividade como um todo, especialmente à população que habita os grandes centros.

Um tratamento real e efetivo para os problemas mencionados demanda atuação conjunta e compartilhada entre os entes, que busque superar as limitações através de formas alternativas de gestão, mais democráticas e solidárias.

O presente trabalho pretende explicitar a forma como esses conflitos se estabelecem, com vistas a refletir a respeito dos mecanismos existentes na legislação que possibilitam a superação dos obstáculos, efetivando o diálogo. Desse modo, inicialmente será feita breve abordagem a respeito da competência dos entes federativos estabelecida pela Constituição Federal; a seguir, passase a analisar conflitos entre as leis federais que

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tratam dos temas urbanos e ambientais; e na terceira seção serão abordados os impasses e possíveis soluções para os problemas.

1 A COMPETÊNCIA EM MATÉRIA AMBIENTAL NO FEDERALISMO BRASILEIRO

Sabese que o Brasil é uma República Federativa, isto é, é formado pela união indissolúvel de estados, municípios e o Distrito Federal. Segundo Barroso (2007), são elementos básicos da ideia de federação a autonomia dos entes federados e a repartição constitucional de competências. Não existe hierarquia na organização federal, porque a cada esfera de poder corresponde uma competência determinada (SILVA, 2006).

De forma geral, o princípio que norteia a distribuição de competências é a predominância do interesse, cabendo à União, por exemplo, as matérias e questões de interesse geral e nacional; aos estados, os temas regionais; e aos municípios os assuntos de interesse local; destaquese que a Constituição em vigor não deu definição satisfatória ao conceito de interesse local (SILVA, 2006).

Buscando encontrar o equilíbrio e visando oferecer mecanismos para solucionar os problemas atuais, cada vez maiores, foram instituídas pelos constituintes, além das competências exclusivas e privativas de cada ente, a comum e a concorrente, definidas por José Afonso da Silva (2006) como:

Comum: faculdade de legislar ou praticar certos atos em determinada esfera, justamente e em pé de igualdade com outras, consistindo, pois, um campo de atuação comum a várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida cumulativamente (art. 23). Concorrente: cujo conceito compreende dois elementos: a possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa e a primazia da União no que tange à fixação de normas gerais (art. 24 e parágrafos).

Entretanto, a forma de cooperação entre os entes da federação não foi especificada, o que provoca conflitos e justifica omissões por parte das entidades responsáveis. É o que se observa, por exemplo, em relação à invasão de áreas ambientalmente protegidas e ao crescimento de loteamentos irregulares. O município alega que é competência da União fiscalizar e conter a ocupação da área; a União contesta, afirmando que o uso e ocupação do solo urbano são problemas de interesse

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local, sendo, portanto, da competência do município. A disputa se arrasta, enquanto as ocupações ampliamse e a degradação aumenta.

Para evitar esse tipo de problema, o art. 23 da Constituição Federal foi acrescido de um expressivo parágrafo, de acordo com o qual lei complementar fixará norma de cooperação entre a União e os estados, o Distrito Federal e os municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bemestar em âmbito nacional. Entretanto, a referida lei complementar nunca foi elaborada. Mas será que precisaria ter sido? Se a própria Constituição previu a cooperação e se através desta é possível estender a proteção aos bens relevantes, como, por exemplo, ao meio ambiente, então parece não haver razões para não aplicála. A lei complementar poderia, na hipótese, detalhar como a cooperação ocorreria.

As vantagens de uma cooperação entre os entes é que as pessoas políticas poderiam realizar troca de informações, ações conjuntas, a fiscalização poderia ser divida, e o mais importante: a proteção poderia ser mais efetiva.

Mas o que se verifica na verdade é uma grande competição entre os entes, com notável prevalência do interesse federal. Apesar de inexistir hierarquia entre os entes, a União detém o maior e mais importante leque de competências exclusivas, além do que, ao estabelecer as normas gerais, acaba determinado o comando geral das competências, restando pouco espaço para a competência residual. Isso pode ser problemático, considerandose que normalmente a União desconhece os problemas locais.

Como se observa, a competência concorrente para legislar e comum para atuar têm o objetivo de ampliar a proteção do bem, para isso tornando todos os entes responsáveis por ele de alguma maneira. No entanto, em outra medida, o fato de o campo de atuação de cada ente federativo não ser claramente definido gera problemas como a omissão e o infindável jogo de repasse da responsabilidade de um ente para outro. O que poderia servir para proteger acaba funcionando como argumento para justificar a falta de proteção. O fato representa obstáculo também para o cidadão que deseja encontrar solução para suas pretensões mas não sabe a quem se dirigir.

Em regra, mecanismos cooperativos tendem a depender de iniciativas federais. Segundo Abrucio (2006), o governo central deve repassar funções e realizar a coordenação das ações mais gerais, fornecendo ajuda técnica e financeira aos níveis inferiores, atuando em prol do equilíbrio das regiões. Já os governos estaduais e

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municipais precisam aprimorar sua estrutura administrativa e seus mecanismos de accountability democrática. Todas as esferas de poder devem desenvolver instrumentos e mesmo cultura política vinculados às relações intergovernamentais, em particular no caso do governo central, em razão de seu papel necessariamente coordenador.

Todos os caminhos apontam que a melhor forma de alcançar melhor qualidade de vida para a população, universalizando seus direitos sem esgotar os recursos naturais, é por meio de ações conjuntas.

No atual estágio de desenvolvimento urbano, soluções locais podem ser insuficientes diante do tamanho dos problemas. O caminho, portanto, é, em lugar de conflito político, fazer a celebração de convênios e consórcios, com a definição consensual dos papéis de cada um, compartilhando esforços e buscando soluções possíveis e viáveis.

No tópico seguinte será feita uma análise das principais leis que impactam o meio ambiente urbano. Pretendese demonstrar que a produção legislativa brasileira, no que se refere à temática urbanoambiental, carece de harmonia, apresentandose algumas vezes até contraditória. Além disso, notase uma sobreposição dos interesses da União sobre os dos demais entes, que acabam encontrando dificuldades para solucionar problemas locais ou mesmo para partir rumo a soluções mais amplas quando o problema extrapola os limites do território.

2 A LEGISLAÇÃO QUE IMPACTA A POLÍTICA URBANA: CONFLITOS E DIÁLOGO

A partir do ano 2000 observouse significativo processo de institucionalização da questão urbana no país, com a implementação e/ou discussão de leis importantes, como o Estatuto da Cidade; o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social; o marco regulatório do saneamento e o Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial. São normas que visam, à luz da Constituição Federal, reforçar a dimensão pública e social da gestão do solo urbano.

Entretanto, apesar de ter havido aumento da produção legislativa a respeito das temáticas urbana e ambiental visando a assegurar o direito à cidade sustentável, observase que o acesso e a fruição de tais direitos ainda não são extensivos a toda a coletividade. As razões que impedem a plena fruição desses direitos são muitas e vão

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desde deficiências na produção legislativa, passando pela falta de vontade política até chegar à preponderância do interesse privado, isto porque assegurar amplamente esses direitos significa interferir no direito à propriedade, o que conflita com os interesses de alguns setores da sociedade.

Nesta seção será feita uma abordagem a respeito de algumas leis que impactam a gestão ambiental das cidades e a política urbana, enfocando pontos de conflito que são possíveis de verificar entre elas.

No âmbito da gestão ambiental urbana, as leis federais que disciplinam a proteção e o uso do meio ambiente que interessam diretamente aos planejadores urbanos são representadas pelo Código Florestal (Lei 4.771/65), pela Lei de Parcelamento Territorial Urbano (Lei 6.766/79), pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA (Lei 6.938/81), pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) e...

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