A constituição do espaço político em Hannah Arendt

AutorRafael Vicente de Moraes
Páginas30-45

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Vemos o pensamento dar-se por tarefa julgar a ida, de lhe opor saberes pretensamente superiores, de a medir com seus valores e de a limitar, a condenar.

Deleuze

A obra* de Hannah Arendt tem ocupado um campo teórico-reflexivo cada vez maior, no que se refere à filosofia da ação e ao pensamento político moderno, abrindo veios para pensá-los sob outras perspectivas. Há grande esforço para desvelar a multiplicidade e a complexidade como bases constitutivas da ação humana. Antes de adentrar, entretanto, ao debate proposto por Arendt, cabe breve digressão acerca de sua condição, que guarda fortes vínculos com a construção de seu quadro teórico.

Hannah Arendt nasceu em 1906, na Alemanha. Por ser de origem judaica, foi forçada a abandonar sua terra, em virtude da ascensão nazista em 1933. No ano seguinte, refugiou-se em Paris. Nos Estados Unidos, em 1941, tomou conhecimento do extermínio sistemático dos judeus nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Desde então, na condição de apátrida, passou a se debruçar sobre o fenômeno do nazismo, considerando insuficientes todas as teorias gestadas no Ocidente para compreendê-lo. Em A dignidade da política (1993a), Arendt estranhara o fato de nenhum filósofo deitar atenção às experiências do terror. A tradição ocidental mostrou debilidade grande por não dispor de categorias analíticas capazes de elucidar tal fenômeno.

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Sob formas de governo baseadas no terror, o isolamento e a solidão transformaram os homens em seres extremamente vulneráveis, sujeitos a obediência passiva e absoluta, não havendo espaço para o exercício político. A partir daí sua obra ganha densidade.

A concepção de filosofia em Hannah Arendt

Parte substancial da reflexão de Arendt é tomada pela relação entre filosofia e política ou entre a atividade do pensamento e a ação. Ao exercício de filosofar designava como atividade de natureza solitária, que exige do filósofo um distanciamento, uma espécie de retirada da realidade, dos sentidos e das coisas, com o fito de buscar verdades, num diálogo circunscrito em si mesmo. O filósofo, “[...] não abandona o mundo das aparências, mas se retira do envolvimento ativo nesse mundo para uma posição privilegiada, que tem como finalidade contemplar o todo”. (ARENDT, 1993b, p.73). Quanto à ação, entendia que a capacidade de pensar dispensada à política não é a mesma e tampouco depende do pensamento filosófico. A filosofia não poderia reconciliar-se inteiramente com a política. É um modus imposto pela atividade de pensamento escolhida. Por isso mesmo, o filósofo torna-se motivo de riso para a multidão, “que o vê na aparente inutilidade das questões de que ele se ocupa” (ARENDT, 1983, p.64).

Essa forma de pensamento dá-se na mais absoluta solidão. A contemplação confere a poucos o privilégio de entender a realidade do ser – objeto de enfoque científico –, mediante o distanciamento de questões terrenas, bem como dos demais homens que se encontram imersos no mundo aparente e ocupados com os assuntos humanos. Implica, portanto, o adestramento da mente – condição que a maioria dos homens não preenche –, para alcançar a essência da realidade. O filósofo tradicional busca ancoragem num fundamento externo, pelo qual é possível forjar um sistema de representação abstrato-categorial para compreensão da realidade e, ao mesmo tempo, resolver todos os conflitos e as contradições inerentes ao mundo dos negócios humanos.

A tradição filosófica ocidental reduziu a aparência em sua complexidade e diversidade fenomênica a uma base de entendimento única, visando a determinar o agir e o pensar humanos (MORAES, 1993; ROVIELLO, 1992). Com efeito, Arendt (1993b, p.159) ressalta:

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[...] juntei-me claramente às fileiras daqueles que, já há algum tempo, vêm tentando desmontar a metafísica e a filosofia, com todas as suas categorias, do modo como as conhecemos, desde o seu começo, na Grécia, até hoje.

As atividades espirituais fundamentais – o pensar, o querer e o julgar – não florescem no mundo das aparências. As atividades espirituais significam retirada do mundo comum, como é dado aos sentidos, a fim de refletir acerca da experiência, criando um quadro de generalizações imprescindíveis ao entendimento do senso comum. Para Arendt (1983, p.59-60):

[...] uma vez que as atividades do espírito, por definição não-aparentes, ocorrem em um mundo de aparências e em um ser que participa dessas aparências através de seus órgãos sensoriais perceptivos, bem como através de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros, elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências.

A questão da retirada dos filósofos do mundo das aparências esteve presente no pensamento filosófico de Arendt (BOELLA, 1990; TAMINIAUX, 1992). “A experiência do eterno tal como a tem o filósofo
[...] só pode ocorrer fora dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens [...] Politicamente falando, se morrer é o mesmo que ‘deixar de estar entre os homens’, a experiência do eterno é uma espécie de morte” (ARENDT, 1983, p.29). Quando ocorriam injustiças praticadas por governos tirânicos, os filósofos indignavam-se e buscavam o distanciamento, mas não se desvinculavam da realidade. Não obstante, Arendt volta-se contra essa postura, no exato momento em que os filósofos anelam o retorno ao mundo, transfigurando-o à imagem de seu próprio pensamento. Essa é a atitude de Platão, ao opor o autogoverno dos cidadãos atenienses, em especial, à verdade erigida pelo filósofo, ou seja, ao “governo de poucos” (ARENDT, 1988, p.294). Pela atitude contemplativa, pois se retira da

polis , o filósofo é capaz de apreender a origem de tudo, os nexos e as leis causais existentes no mundo real e responsáveis pela ação humana. Desse modo, a filosofia, para a autora, não deveria tratar de questões políticas e públicas.

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A tradição filosófica ocidental, que abriga seu nascimento em Platão, e, a partir daí, o desenvolvimento de escolas e correntes teóricas, apresenta como maior desígnio a fundamentação, seja de si mesma, seja de todas as atividades humanas (OLIVEIRA, 1993; TUGENHAT, 1992). O campo reflexivo-teórico logrou, para se constituir como tal, a busca e o entendimento da unidade do real e de seus princípios norteadores. O conhecimento e a ação humana balizados na razão universal levam a cabo os procedimentos da ciência para se chegar à essência das coisas. É esse o caminho que a atividade do pensamento deve trilhar, e, de algum modo, assinala a singularidade do pensar filosófico. Segundo Aguiar (2001, p.16), “Os critérios da validação para o pensar e agir humanos não provêm de acordos deliberadamente firmados pelo homem, mas estão relacionados a princípios universais, cuja tematização cabe à filosofia”.

O empreendimento filosófico, ao dirimir a dimensão individualizadora do homem naquilo que lhe interessa, que ele pensa ou busca, levou Arendt a conceber a filosofia como inapropriada ao trato das questões públicas. Evidentemente, essa idéia está vinculada a tudo que vinha acontecendo nos governos totalitários, especialmente o nazismo, e na tradição político-filosófica ocidental.

A constituição do espaço político (der Politik)

A princípio, Arendt admite...

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