Práticas participativas e clientelismo político: a lógica das experiências de gestão integrada

AutorGisele Dos Reis Cruz
CargoGisele dos Reis Cruz é doutora em Sociologia (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Iuperj) e professora titular da Universidade Salgado de Oliveira. [giselereis@globo.com]
Páginas67-83
PRÁTICAS PARTICIPATIVAS E CLIENTELISMO POLÍTICO:
A LÓGICA DAS EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO INTEGRADA
GISELE DOS REIS CRUZ *
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objeto as experiências de gestão integrada que envolvem
governo e sociedade no processo de elaboração e implantação de políticas
públicas. Trata-se de um novo formato que permite a intervenção da sociedade
civil organizada nos assuntos públicos, levando à participação da população na
definição de uma agenda de prioridades a ser considerada pelos
representantes do Poder Público. Dentre as formas de gestão integrada mais
conhecidas estão os conselhos setoriais municipais, os fóruns de debate e o
orçamento participativo. Este novo modelo de gestão pública vem sendo posto
em prática em diversas localidades brasileiras, sobretudo a partir da década de
1980, num contexto de crise fiscal do Estado e de redemocratização.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a participação das
chamadas coletividades no processo de organização de demandas sociais
passou a ser estimulada, abrindo espaço para o surgimento de novos arranjos
institucionais voltados para a organização da sociedade para a participação na
definição de políticas direcionadas às suas reais necessidades. Por se
constituírem num canal de debate onde a apresentação de propostas para a
solução dos problemas locais ocorre através da negociação entre os diversos
segmentos da sociedade, estas experiências participativas têm como princípio
básico o aperfeiçoamento da democracia, pois possibilitam uma maior
adequação entre programas governamentais desenvolvidos e reais demandas
e necessidades dos indivíduos.
A finalidade deste artigo é mostrar que, embora esteja implícita nessas
experiências de participação a proposta de tornar mais simétricas as relações
de poder entre o governo e a sociedade, a assimetria de poder é reproduzida
nessas novas formas de intervenção política, sendo, inclusive, reforçadas. A
desigualdade nas relações de poder permanece principalmente em função da
persistência de traços clientelistas que coexistem com estas novas formas de
participação. Pretendo mostrar que a coexistência entre práticas clientelistas,
baseadas na assimetria de poder, e práticas participativas, fundadas no
princípio da igualdade nas relações de poder, ocorre sob a forma de uma
tensão que se estabelece entre a representação e a participação.
Não pretendo abordar essa questão do ponto de vista de uma oposição entre
democracia representativa e democracia participativa, pois é notório que as
sociedades modernas não podem prescindir do mecanismo da representação.
Inclusive, mesmo nesses espaços de debate, os diversos segmentos sociais
acabam também sendo representados por líderes. Apenas procuro mostrar
que o exercício da representação pode vir a inibir e dificultar práticas
participativas baseadas na simetria de poder, sobretudo quando o exercício da
representação é permeado por vícios clientelistas, o que contribui para a
reprodução de relações de poder desiguais. Este processo dar-se-ia
principalmente através do sentimento de ameaça vivido pelos representantes
eleitos ao se depararem com uma estrutura participativa que estimula o
envolvimento mais sistemático das bases eleitorais com os assuntos públicos,
em detrimento de uma relação pessoal estabelecida entre representante e
eleitor.
O reforço de práticas tradicionais baseadas na assimetria das relações de
poder verifica-se no momento em que os representantes eleitos, sobretudo da
esfera municipal, procuram reforçar os laços com sua base, através do
fortalecimento de práticas clientelistas, como forma de sobrepujar as ações
participativas desenvolvidas em sua localidade. A atuação dos representantes
eleitos estabelece uma tensão em relação às práticas participativas, não
somente em virtude do reforço dos laços clientelistas mas em função da
própria forma como se comportam diante das reuniões e ações delineadas
nesses espaços de debate e interação entre governo e sociedade. Em
determinados contextos, a presença dos representantes municipais nos
espaços de interlocução é quase nula ou ocorre sob situações de atrito,
revelando a pouca ou nenhuma abertura à interferência dos setores
organizados da sociedade nos assuntos públicos.
A discussão dessas questões será feita tendo como base um estudo empírico
realizado no município de Paraty (RJ), cujo instrumento de análise foi o Fórum
de Desenvolvimento Local (Fórum DLIS). Os dados aqui apresentados são
fruto de uma pesquisa de corte qualitativo, com ênfase em duas técnicas:
observação participante e realização de entrevistas semi-abertas com
membros e não-membros do Fórum. Sendo assim, no decorrer do texto serão
explicitados alguns depoimentos como forma de ilustrar a temática discutida,
tendo em mente que as falas representam a forma como os entrevistados
percebem a realidade política e social de seu município.
As falas aqui utilizadas expressam uma representação da realidade vinculada
ao tipo de inserção política e social do sujeito. Sobre isso, Peter Berger e
Thomas Luckmann (1995) afirmam que a realidade não existe por si só, fora
da consciência dos sujeitos, mas é sempre resultado da construção mental,
sendo, portanto, socialmente construída. Nesse sentido, os discursos acerca
da dinâmica do Fórum e da relação estabelecida entre governo local e
sociedade provêm de indivíduos inseridos num determinado contexto social, de
modo que sua percepção acerca da realidade é influenciada por valores,
possuindo, portanto, um conteúdo ideológico.
O caráter ideológico dos discursos de sujeitos socialmente condicionados é
bastante trabalhado por Karl Mannheim (1986) quando este apresenta a
definição de ideologia total. Segundo ele, a atividade mental do sujeito
determina a forma como o mundo aparece, no sentido de que o “mundo”
somente existe com referência à mente que o conhece. Este tipo de
concepção de ideologia teria raízes na definição de Hegel e da Escola
Histórica, pois estes partem da suposição de que o mundo somente é
concebível a partir de um sujeito conhecedor. Sendo assim, a percepção da
realidade política e social do município de Paraty pelos entrevistados deve ser

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