O HIV e a Aids: Preconceito, Discriminação e Estigma no Trabalho ? Aplicação da Súmula n. 443 do Tribunal Superior do Trabalho

AutorLuiz Eduardo Gunther
Ocupação do AutorProfessor do Centro Universitário Curitiba ? UNICURITIBA
Páginas115-129

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1. Os vocábulos discriminação, preconceito e estigma

Quando se deseja conhecer um assunto por inteiro torna-se necessário, em primeiro lugar, examinar o verdadeiro sentido das palavras que o envolvem. Não se pode falar no tema HIV/AIDS sem entender o significado dos vocábulos discriminação, preconceito e estigma, que guardam sentidos distintos.

Quando mencionamos a palavra discriminação devemos levar em conta aspectos subjetivos e objetivos. O elemento subjetivo relaciona-se à intenção de discriminar. De outro lado, o elemento objetivo caracteriza-se pela preferência efetiva por alguém em detrimento de outro “sem causa justificada, em especial por motivo evidenciado”. Esse comportamento revela “uma escolha de preconceito em razão do sexo, raça, cor, língua, religião, opinião, compleição física ou outros fatores importantes”1.

Quanto ao momento do ato considerado discriminatório, parece hoje não haver mais dúvidas, no âmbito trabalhista, que práticas discriminatórias podem ocorrer “na admissão, no curso da relação de emprego e na dispensa, quando configurada ofensa à dignidade do trabalhador e ao princípio da igualdade”2.

A proibição da prática discriminatória no emprego tem fundamento no inciso xxx do art. 7º da CF/1988, nas Convenções n. 111 e 117 da OIT e na Lei n. 9.029/1995. Nesses registros normativos, porém, não se considera como fator de discriminação o estado de saúde. Possível é, no entanto, por interpretação extensiva ou aplicação analógica, aplicar essa normatividade “quando o fator de discriminação é o estado de saúde do empregado”3.

Os casos mais frequentes de discriminação por motivo de saúde ocorrem “nas hipóteses de lesões por esforço repetitivo (LER) e as de síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS, rectius: SIDA)”4.

Considera-se possível juridicamente, também, fundamentar pela aplicação da regra proibitiva a tais hipóteses no sentido de que “a enumeração legal é meramente exemplificativa, e não taxativa ou limitativa”5.

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Na fase pré-contratual, vale dizer, no momento do processo de seleção dos candidatos a emprego, pode-se caracterizar o ato discriminatório até mesmo na análise da codificação genética do candidato com o objetivo de averiguar se este é portador do vírus HIV. Embora o ordenamento jurídico brasileiro não possua “norma que vede esta conduta ao empregador”, certamente que se pode considerá-la “injurídica por força da vedação discriminatória”6.

O ordenamento jurídico brasileiro possui como uma de suas vigas mestras, em matéria de direitos fundamentais, “a vedação de discriminação injustificada”. Nesse sentido, a dispensa discriminatória “do portador de LER ou do vírus HIV deve ser sancionada com a decretação de nulidade do ato patronal, com a consequente reintegração”. Essa reintegração determinada judicialmente mais se justifica “na regra interpretativa de máxima eficácia dos preceitos que asseguram os direitos fundamentais”7.

Ao comparar o portador de LER (ou DORT) com o portador do vírus HIV/AIDS, Marcus Aurélio Lopes explicita como o empregado acometido por doença acaba estigmatizado no seu ambiente de trabalho, pois se confunde a vítima de doença com o funcionário inapto, pouco produtivo, ineficiente. Nessas situações, revela-se que o portador de LER/ DORT e do vírus HIV/AIDS:

Sofre de uma patologia oculta, que impede o pleno desenvolvimento da atividade laboral, mas não o incapacita totalmente. De outro lado, implica numa alteração do comportamento do paciente, confundida quase sempre como desídia ou baixo desempenho, resultando invariavelmente no desempenho do trabalhador. Em comum, as doenças revelam-se altamente estigmatizantes para o trabalhador.8

Consoante explicita Larissa Renata Kloss, a discriminação ilícita, injustificada ou negativa “demonstra o repúdio às diferenças, à diversidade de características existentes na condição humana”. Objetiva utilizar as diferenças “para prejuízo de outros indivíduos ou de minorias menos favorecidas”, isto é, “de pessoas que não possuem características que correspondem àquelas consideradas fortes ou vantajosas na realidade”9.

A palavra estigma possui um sentido negativo, tratando-se de um fator de diferenciação normal-mente injustificado, gerando consequentemente a exclusão social e a invisibilidade em relação às qualidades do indivíduo10.

O estigma, sem dúvida, produz um descrédito relativamente ao indivíduo, reduzindo as suas possibilidades de vida11.

Não é demais insistir na afirmação de que os empregados excluídos do mercado de trabalho suportam duas espécies de doença, sendo uma delas o preconceito com que são tratados:

Nesse cenário nada animador, dois grupos parecem sofrer os efeitos da falta de ocupação mais que os outros: os trabalhadores sem qualificação, pois o mercado, por força da implantação de novas tecnologias na produção, cada vez menos exige a sua presença, e os que, por diver-sas razões, pertencem a grupos que são alijados do processo produtivo.

Tratando especificamente desse último grupo, padece ele da falta de trabalho por conta de ‘doença’ que persegue parte da humanidade desde o início dos tempos: o preconceito12.

Tomando-se por base a Convenção n. 111 da OIT, torna-se possível entender a discriminação como todo “o tratamento injustificavelmente diferenciado dispensado a determinada pessoa ou grupo de indivíduos, atuando como fator de redução de oportunidades no seio social”13.

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Esses empregados, assim, passam a ser estigmatizados, suportando “um sistemático tratamento diferenciado”, tornando-se “duplamente vitimizados, tanto pela enfermidade que os acomete, quanto pela discriminação a eles voltada”14.

A discriminação e o estigma transparecem na atividade empresarial onde o trabalhador é candidato ao emprego ou já desenvolve os seus serviços. Pode a discriminação “se dar no ingresso em um emprego”, momento em que algumas empresas “procuram se certificar de que o candidato não possua doença grave ou preexistente, principalmente em se tratando de AIDS”15. Quando a empresa ou os colegas de trabalho tomam conhecimento “de que o empregado é portador da doença, a situação se agrava”. Dessa maneira, sofre, o empregado soropositivo, “a estigmatização das diferenças e a segregação injustificada”, o que ocasiona “manifesto prejuízo ao bem-estar e à paz sociais, imprescindíveis à sociedade justa e fraterna preconizada na Constituição brasileira”16.

Por esses delineamentos pode-se ver o quanto afeta o ser humano a discriminação, o preconceito e o estigma. Essas palavras encontram-se presentes sempre que se examina a questão HIV/AIDS. O pleno conhecimento do sentido que se esconde por trás desses tratamentos é objeto do nosso estudo, não só no sentido linguístico, mas de suas consequências e reflexos na vida humana.

2. Terminologia e metáfora: aspectos históricos, sociológicos, médicos, biológicos e estatísticos

Quais as palavras que devem ser usadas para designar quem está sofrendo por ser portador do HIV/AIDS? Qual é a metáfora que se esconde no entendimento do problema da contaminação? E os aspectos biológicos e médicos que devem ser compreendidos? As informações históricas e estatísticas que devem ser examinadas? Como devemos encarar essas questões nos âmbitos sociológico e jurídico?

Durante algum tempo, o medo do contágio levou a uma consideração puritana sobre o tema, nos anos 90, culpando “a tolerância iniciada nos anos 60 pelo problema atual da AIDS”. Nesse sentido, por exemplo, não só os moralistas, mas também uma notória defensora da liberdade sexual, como a ensaísta e professora Camille Paglia, que se manifestou, em livro, no seguinte sentido:

Os anos 60 tentaram um retorno à natureza que acabou em desastre. Tomar banho nu e deslizar na lama de Woodstock por brincadeira foram uma espécie de sonho rousseauniano de vida breve. Minha geração, inspirada pelo espírito de revolta dionisíaca do rock, tentou fazer algo mais radical do que qualquer outra coisa desde a Revolução Francesa. Perguntávamos: por que devemos obedecer a essa lei? E por que não deveríamos seguir nosso impulso sexual? O resultado foi uma queda na barbárie. Descobrimos dolorosamente que uma sociedade justa não consegue realmente funcionar se todos fazem o que bem entendem. E da promiscuidade pagã dos anos 60 veio a AIDS. Todos de minha geração que pregaram o amor livre são responsáveis pela AIDS. A revolução dos anos 60 nos Estados Unidos entrou em colapso em razão de seus próprios excessos.17

Indaga o jornalista Gay Talese, sobre essa observação: “Mas entrou mesmo em colapso”? E responde negativamente, pois, na sua ótica, ao contrário da opinião acumulada pelas pesquisas, duvida que os Estados Unidos dos anos 90 (com o devido respeito à ansiedade e ao medo provocados pela AIDS) estejam se submetendo a um novo puritanismo, “capaz de reprimir as tentações e os privilégios que pareciam tão chocantes quando se tornaram públicos, há trinta anos”18.

Ao precisar manifestar-se sobre a doença e o sofrimento, nem sempre o trabalhador revela tudo o que é necessário. Constata-se, na prática médica e na pesquisa a respeito da saúde, “a reticência maciça em falar da doença e do sofrimento”.

Quando se está doente, tenta-se esconder o fato dos outros, mas também da família e dos vizinhos. É somente após longas voltas que se chega, às vezes, a atingir a vivência da doença, que se confirma como vergonhosa: bastou uma doença ser evocada para que, em seguida, venham numerosas justificati-

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vas, como se fosse preciso se desculpar. Não se trata de culpa no...

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