A Súmula n. 443 do TST e a Reintegração do Empregado Portador do Vírus HIV ou de Outra Doença Grave

AutorRaquel Betty de Castro Pimenta
Ocupação do AutorMestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG
Páginas131-140

Page 131

1. Introdução

A proteção jurídica contra a discriminação em matéria de emprego advém não apenas de normas legais, mas é concretizada também através de entendimentos jurisprudenciais que, a partir da teleologia traçada pelos preceitos constitucionais e por tratados internacionais, aplicam em casos submetidos à apreciação do Poder Judiciário o princípio da não discriminação.Desse modo, a partir dos preceitos gerais que vedam qualquer forma de discriminação para efeitos de acesso ou manutenção da relação de emprego, situações específicas relativas à discriminação contra portadores de doenças graves, entre elas o HIV e a AIDS, passaram a ser disciplinadas pela via jurisprudencial. Registre-se, a este respeito, que a jurisprudência é fonte do Direito do Trabalho, nos termos do art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Sobre o tema, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), por meio da Resolução n. 185/2012, editou a Súmula 443, que dispõe acerca da presunção de discriminação na dispensa de empregado portador de doença grave, afirmando o seu direito à reintegração ao posto de trabalho ante a nulidade do ato. Eis o seu inteiro teor:

súmula n. 443 do tst disPensa discRiMinatÓRia. PResUnÇÃo. eMPRegado PoRtadoR de doenÇa gRave. estigMa oU PReconceito. diReito À ReintegRaÇÃo – Res. 185/2012, deJt divulgado em 25, 26 e 27.09.2012

Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.

O presente trabalho aborda o tema contido no novo entendimento jurisprudencial consolidado, que reflete tendência jurisprudencial de se presumir discriminatória a dispensa imotivada de trabalhadores portadores de doenças graves.

2. Discriminação do portador de hiv e outras doenças graves

“Doenças sempre serviram para práticas discriminatórias”, como ensina Luiz Otávio Linhares Renault (2010. p. 118). A condição de ser portador de uma doença grave, muitas vezes incurável, acarreta um tratamento diferenciado, podendo provocar a segregação do doente do corpo social.

Page 132

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (identificada pela sigla AIDS, do inglês Acquired Immunodeficiency Syndrome) é uma doença crônica, que ataca o sistema imunológico, possibilitando o desenvolvimento de infecções oportunistas, que podem levar a diversos distúrbios de saúde graves e à morte. A AIDS é o estágio avançado da doença causada pelo vírus da imunodeficiência humana, o HIV (do inglês Human Immunodeficiency Virus)1.

Ser portador do vírus HIV não é sinônimo de ter a AIDS. Conforme informações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2013), há muitos soropositivos (portadores de HIV) que vivem anos sem apresentar sintomas ou desenvolver a doença.

Neste ponto, cabe ressaltar que, de acordo com o estágio de desenvolvimento da doença provocada pelo vírus HIV, decorrem diferentes graus de capacidade laborativa, que correspondem a tratamentos jurídicos diversos.

Quando já está plenamente instalado o quadro infecto-contagioso da AIDS, isto é, no estágio avançado da doença provocada pelo vírus HIV, o paciente é acometido por diversas infecções e doenças oportunistas, o que acarreta a necessidade de afastamentos para tratamento de saúde, ou até mesmo sua aposentadoria por invalidez. Neste sentido, a Lei
n. 8.213/1991, que trata dos Planos de Benefícios da Previdência Social, menciona expressamente a AIDS como motivo para concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez independentemente de carência, quando contraída após a filiação ao Regime Geral de Previdência Social2.

Assim, o empregado aidético faz jus à proteção das normas previdenciárias, nos casos em que a doença, já instalada, provoca incapacidade para o trabalho de forma permanente – possibilitando sua aposentadoria por invalidez – ou temporária, por período superior a 15 dias – caso em que há a concessão do auxílio-doença.

Nos períodos de afastamento para tratamento inferiores a 15 dias, aplicam-se as normas trabalhistas atinentes aos afastamentos por motivo de saúde, configurando hipótese de interrupção do contrato de trabalho (uma vez que, nos termos do art. 60, § 3º, da Lei n. 8.213/1991, incumbe ao empregador o pagamento dos salários durante os primeiros 15 dias de afastamento por motivo de doença).

No entanto, quando o empregado é portador do vírus HIV de forma assintomática, não tendo desenvolvido a AIDS, esta condição não influencia de forma contundente na sua capacidade laborativa.

Luiz Otávio Linhares Renault ressalta que a condição de soropositivo nem sempre acarreta a impossibilidade de prestação de serviços, podendo o paciente continuar a exercer seu trabalho sem riscos para os companheiros de trabalho e para a sociedade em uma vasta gama de atividades.

A Organização Mundial de Saúde, em associação com a Organização Internacional do Trabalho, em 1988, através da Declaração Conjunta da Reunião Consultiva sobre a AIDS e o Local de Trabalho, deixou claro que, na grande maioria dos ofícios e profissões e das situações laborais, o trabalho não acarreta nenhum risco de contaminação ou transmissão do vírus HIV, seja de um empregado para o outro, seja de um empregado para um cliente (BARROS, 2007. p. 10).

De acordo com Luiz Otávio Linhares Renault, “É obvio que algumas atividades poderiam ser preservadas, não como áreas proibidas ou intocáveis, porém sujeitas a um maior cuidado médico-científico” (2010. p. 119). Nestas áreas em que o próprio trabalhador doente pode estar sujeito a maiores riscos de agravamento de sua condição de saúde, ou em que, pela natureza da atividade, possa haver algum risco de contaminação de terceiros – como em atividades da área da saúde em que haja o manuseio de materiais perfurocortantes – é caso não de rescisão do contrato, mas sim de se promover a readaptação funcional do trabalhador para outras funções ou tarefas em que os riscos sejam afastados ou minimizados3.

Page 133

Assim, com base nas lições de Oscar Ermida Uriarte (1993. p. 49), o princípio de não discriminação impõe que os trabalhadores que já desenvolveram a AIDS e enfermidades conexas devem ser tratados como quaisquer outros trabalhadores enfermos, ao passo que os trabalhadores soropositivos assintomáticos devem ser tratados como qualquer outro trabalhador saudável.

No entanto, mesmo inexistindo risco de contágio ou qualquer incapacidade laborativa, a mera condição de ser portador da doença estigmatizante já submete o trabalhador soropositivo a tratamentos diferenciados e a segregação no ambiente de trabalho por parte do empregador, e até mesmo pelos próprios colegas.

Isto decorre principalmente pelo desconhecimento acerca das formas de transmissão do vírus e pelo estigma moral que reveste a contaminação, já que há a identificação do soropositivo com uma vida sexual desregrada ou como usuário de drogas, por exemplo. Assim, a mera condição de ser portador da doença, mesmo de forma assintomática, já pode provocar a discriminação. Como explica Renato de Almeida Oliveira Muçouçah (2007):

A AIDS, por seu desenvolvimento ligado à decomposição física, dores abjetas e fatalidade repentina, provocou um verdadeiro pavor social – e conseqüente repressão a quem trazia a peste à humanidade. As técnicas de exclusão da sociedade, utilizadas à época dos leprosos – de cortar do “corpo social” sadio os corpos infectados – foram substituídas por técnicas que poderíamos denominar panópticas. Trata-se da inserção social perenemente controlada dos “pestilentos”. E esta vigilância moral dos considerados seres desviantes das corretas condutas, como os já aludidos homossexuais, os usuários de drogas injetáveis, as pessoas de vida sexual desregrada e com múltiplos parceiros, etc., permitiu a disseminação de que o reprimir do vírus deveria centrar-se no condenar de quem, ao menos em tese, estivesse apto a transmiti-lo.

É importante ressaltar que a contaminação pelo vírus HIV pode se dar sem que a ela se associe a prática de qualquer ato inerente aos denominados “grupos de risco” (RENAULT, 2010. p. 121). Entretanto, a condenação social dos soropositivos, também de caráter moral, se espraia aos locais de trabalho, acarretando tratamentos discriminatórios referentes, principalmente, à manutenção da relação de emprego.

Contudo, afastar os portadores de HIV e AIDS de suas atividades laborativas, mais do que lhes negar o direito fundamental ao trabalho, pode consistir em uma ofensa ao próprio direito à vida e à saúde, já que representa um retorno à época de segregação dos doentes, com a tentativa de sua eliminação do corpo social.

Renato de Almeida Oliveira Muçouçah afirma que a sociabilização do paciente soropositivo alcançada pelo trabalho tem diversos efeitos benéficos, seja por desconstruir a representação social que se faz do portador ou doente, seja por reconstruir sua auto-identidade, através do trabalho. E completa que o trabalho “torna-se tão vital quanto a função de gerir a própria sobrevivência física. É o real, único e possível conceito de saúde” (MUçOUçAH, 2007).

Ressalta Alice Monteiro de Barros que, para as pessoas infectadas pelo HIV, continuar trabalhando não apenas pode melhorar seu bem-estar físico e mental, pelo caráter de laborterapia, como tem consequências econômicas, consistentes nas repercussões do tempo de serviço nos benefícios previdenciários (BARROS, 2007. p. 22 e 24).

Assim, imperioso o combate aos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT