Jurisdição e princípios: aspectos do pós-positivismo de Dworkin

AutorJoão Andrade Neto
CargoMestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Páginas89-104
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JURISDIÇÃO E PRINCÍPIOS: ASPECTOS DO PÓS-POSITIVISMO DE DWORKIN
João Andrad e Neto
99
Submetido (submitted): 11 de julho de 2010
Aceito (accepted): 01 de agosto de 2011
Resumo: Este artigo foca a teoria de Ro nald Dworkin. É conhecida a concepção do autor acerca da
normatividade dos princípios. A doutrina e a jurisprudência brasileiras frequentemente faz em referência a ela
como exemplo de u m paradigma interpretativo pós-positivista. Todavia, apesar de difundida, a obra de Dworkin
é comumente considerada pouco sistemática. Neste trabalho, pretende-se demonstrar que essa imagem
desconsidera o sofisticado sistema em que se insere a aplicação dos princípios na doutrina do jurista norte -
americano. Para tanto, expor-se-ão as condiçõ es que ele oferece para autorizar o apelo a tais normas no exercício
da jurisdição. A hipótese é que os estudos do autor são dotados de uma coerência sistemática que não se pode
desprezar.
Palavras-chave: Pós-positivismo. Princípios jurídicos. Jurisdição.
Abstract: This article focuses on Ronald Dworkin’s theory, especially on his conception of the normative force
of legal principles. The Brazilian doctrine and jurisprudence frequently mention it as an example of a Post-
positivistic interpretative paradigm. Nevertheless, despite of its diffusion, Dworkin’s theory is not considered
systematic. The main purpose of this paper is to demonstrate that this understanding does not take into
consideration the sophisticated system to which the pr incip les of the North -American author are applied. To
reach this conclusion, the conditions he offers to authorize the use of these norms in the exercise of jurisdiction
will be exposed. The hypothesis is that t he author’s studies carry a systematic coherence that cannot be
disregarded.
Key-words: Post-positivism. Legal principles. Jurisdiction.
1. Um pensamento recorrente: a assistematicidade de Dworkin
Durante o século XX, as ciências jurídicas reconheceram o caráter político e criativo de
toda sentença ou acórdão, independentemente da atitude ativista dos magistrados que os
proferem. Essa mudança acerca da compreensão da natureza da atividade jurisdicional é
inseparável do desenvolvimento de um novo paradigma interpretativo que afirma a
normatividade dos princípios constitucionais. Entre os autores que se destacam em percebê-la,
Ronald Dworkin é um dos mais renomados.
A comunidade jurídica brasileira não permaneceu alheia à influência do jurista norte-
americano e à mudança de concepção que ele representa. Pelo menos desde a década de 1990,
a doutrina e a jurisprudência do País reconhecem a importância do autor e vêm demonstrando
clara intenção de incorporar elementos do pós-positivismo que ele propõe. Passagens de suas
obras são frequentemente citadas nas decisões dos Tribunais Superiores e do Supremo
Tribunal Federal (STF). Ilustra tal situação o seguinte trecho do voto do ministro Menezes
Direito, proferido em 2007, durante o julgamento do MS n. 26.602/07 pelo STF:
Esse método chamado tradicional não consegue esgotar o alcance da Constituição,
não sendo ele já agora suficiente para orientar a leitura da Constituição feita pela
Suprema Corte. É necessário ir além para propiciar uma adequada presença da
Constituição na vida social. Não é por outra razão que Ronald Dworkin enfrenta o
99 Mestre em Dir eito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Analista Judiciário - Área Judiciária,
lotado no Gabinete V da Assessoria Jurídica dos Juízes -Membros do Tribunal Regional Eleitoral de Minas
Gerais (TRE-MG). Professor de Pós-Graduação da Faculdade Del Rey, em Nova Li ma (MG) .
JURISDIÇÃO E PRINCÍPIOS... JO ANDRADE NETO
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que denomina leitura moral da Constituição norte-americana.
100
Ainda assim, os escritos de Dworkin são considerados vagos, difíceis, pouco afeitos à
sistematização. Paulo Bonavides, por exemplo, embora afirme que o jurista estadunidense foi
um dos primeiros a reconhecer a normatividade dos princípios “[...] com toda a consistência e
solidez conceitual [...]”, ressalva haver no pensamento dele “[...] insuficiências e imperfeições
restritivas [...]”, as quais foram [...] corrigidas por Alexy [...]”.101 A este jurista alemão, teria
cabido “[...] fazer o necessário e indeclinável enriquecimento dos conteúdos materiais dos
princípios, cujo raio de abrangência ele alargou, com maior rigor científico.”102
Neste trabalho, parte-se da premissa de que, em maior ou menor medida, a ideia da
pouca sistematicidade da teoria proposta por Dworkin perpassa as discussões acadêmicas e a
jurisprudência brasileira. Pretende-se demonstrar que essa imagem predominante acerca do
autor desconsidera o sofisticado sistema em que se insere a aplicação dos princípios na sua
doutrina. Para tanto, expor-se-ão os critérios oferecidos pelo jurista norte-americano a serem
considerados pelas autoridades que, ao decidirem em nome do Estado, fazem apelo a normas
que não as regras contidas no repertório jurídico explícito.
Há de ressaltar, porém, que este artigo não esgota os parâmetros que justificam a
aplicação dos princípios. A investigação se restringe às situações em que, para Dworkin, o
Poder Judiciário está autorizado a aplicar diretamente tais normas ao exercer a jurisdição.
O marco teórico que fundamenta o estudo é a concepção criativa da decisão
jurisdicional. Tal ideia se encontra exposta principalmente nas obras Levando os dir eitos a
sério103 e O império do direito104. Nelas, o jurista norte-americano reconhece que os
princípios são normas. Esse reconhecimento impacta a compreensão da prestação
jurisdicional, na medida em que introduz no julgamento elementos politicamente
controversos. Princípios são padrões de moralidade pública. Portanto, os juízos que apelam a
eles não podem ser considerados apolíticos, como tradicionalmente se caracteriza a jurisdição.
Essa mudança de perspectiva acerca da aplicação jurídica necessariamente repercute na
tarefa do juiz. A teoria de Dworkin não permite presumir que os magistrados sejam alheios a
preferências políticas nem desprovidos de um senso particular de justiça ou de valores morais
específicos. Ela não nega que as conclusões dos decisores sejam sensíveis às convicções
políticas deles. Ao contrário, exige que, na condição de autoridades públicas, os juízes se
empenhem para interpretar o Direito como um conjunto coerente de princípios.105
A hipótese é que, longe de endossar o arbítrio, a correta compreensão do pós-
positivismo de Dworkin demanda que os julgadores se esforcem para sempre decidir com
base em parâmetros jurídicos, publicamente reconhecidos como tal. Ela desautoriza (torna
100 BRASI L. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Manda do de Segura nça n. 26.602, 4 out. 2007. Tribunal
Pleno. Relator: Ministro Er os Grau. Impetrante: Partido Popular Socialista - PPS. Impetrado: Presidente da
Câmara dos Deputados e Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMDB e Carlos Roberto Massa
Júnior. Diário de Justiça, 17 out. 2008, p. 190.
101 BON AVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. atual. e ampl. (em apend. tex. da CRF/88,
com as EECC até a de n. 56/07). São Paulo: Malheiros, 2008, p. 281.
102 BONAVIDES, 2008, p. 281, grifo nosso.
103 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007b.
104 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo Sá
Leitão Rios. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007a.
105 DWORKIN, 2007a; 2007b.

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