Prisioneiros, Direitos e Guerra no Brasil de Vargas (1942-1945)

AutorPriscila Ferreira Perazzo
CargoUniversidade Municipal de São Caetano do Sul. Doutora em História Social (USP, 2002).
Páginas41-53

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Priscila Ferreira Perazzo2

*Uma versão anterior deste artigo foi originalmente apresentada no Seminário Internacional “Relações Raciais, Direito e História” na Universidade Federal de Santa Catarina, em 17 de setembro de 2007.

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Introdução

Em 10 de dezembro de 2008, comemorouse sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Certamente é uma comemoração das mais importantes na nossa contemporaneidade, pois os esforços dessa conquista devem ter lugar marcante na memória da Humanidade, pois foram muitas vidas “violadas” de diversas maneiras, para que a Humanidade entendesse o significado fundamental desse direito.

Ainda no século XXI, cujo legado dos Direito Humanos nos é presente e profícuo, deparamonos com notícias que atestam o recrudescimento da xenofobia, da perseguição aos imigrantes, da intolerância com o diferente, da flexibilização dos direitos civis visando a ampliação da segurança nacional e do advento da guerra como forma de resolução de conflitos internacionais. E por isso, entre outros fatores, os Direitos Humanos devem ser rememorados e reeditados, a fim de que se desperte a humanidade para a universalização dos ideais democráticos, não como retórica, mas como meta, e que o conceito de democracia extrapole sua dimensão de regime de governo, realizandose como uma “forma de sociedade”3

Dessa forma, estudos sobre a Segunda Guerra Mundial ainda são bastante atuais no sentido de nos explicar alguns dos cenários que vivemos nos últimos sessenta anos e nos fazer entender a importância que toma, a cada dia, a questão

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dos Direitos Humanos. O tema do internamento de alemães, japoneses e italianos em campos de concentração para civis no Brasil, sob a condição de prisioneiros de guerra, nos remete a diversas questões sobre prisões e liberdades, sobre sentimentos nacionais, sobre política nacional e internacional.

A condição de prisioneiros de guerra foi imputada aos alemães, japoneses e italianos – à época, chamados de “súditos do Eixo” - diante de dois planos políticos: o primeiro voltado à construção do projeto nacional para o Brasil e o segundo, voltado para a busca de um lugar de destaque no contexto internacional. Ambas as dimensões de política interna e externa compunham o programa político do governo Vargas, dedicado a implementar a modernização do país em todos os sentidos.

Em busca desse projeto nacionalmoderno, de cunho autoritário e nacionalista, o Estado Novo identificou e perseguiu aqueles que foram considerados “perigosos à segurança nacional”. As garantias da cidadania do estrangeiro foram cerceadas; seus bens foram confiscados e a locomoção controlada, enquanto tinha o cotidiano vigiado e o acesso restrito às informações. A situação de opressão e perda das garantias individuais culminou com prisões e internamentos de cidadãos rotulados como “súditos do Eixo”. A permanência desses indivíduos em presídios, em colônias penais e em campos de internamento ou de concentração variou em função de decisões arbitrárias por parte da polícia, do governo e da diplomacia brasileira. Por sua vez, as condições de internamento estiveram sob a égide dos direitos de Genebra que regulavam os direitos humanitários. Devido às atrocidades de guerra e aos direitos humanitários que discutiuse, mais amplamente, no pósguerra, os direitos humanos.

Nesse sentido, esse texto voltase, mais especificamente, para o quadro da política brasileira durante a Segunda Guerra Mundial, na tentativa de apontar as fissuras internas do governo Vargas, que foram visíveis no tocante ao tratamento de questão tão delicada à época: o internamento de “súditos do Eixo”. Mergulhar nas motivações e trazer à tona os interesses do governo Vargas, em relação ao tratamento dispensado aos estrangeiros do Eixo no Brasil, durante a guerra, contribuem para compreendermos o envolvimento do país no conflito, para percebermos as rachaduras e fissuras no interior da elite política e governamental que teve dificuldade em lidar, em âmbito internacional, com a problemática do internamento de civis e com as regras dos Direitos Humanitários de Genebra. A forma como seriam tratados tais prisioneiros não significou apenas uma questão relacionada ao projeto de edificação do Estado Nacional moderno, mas também constituiuse em elemento de negociação no campo da política internacional entre Brasil e Aliados, permeada por temas, ainda que embrionários, de direitos, liberdades e humanitarismo.

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A partir de 1942, com o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com o Eixo, com a aliança definitiva com os Estados Unidos e com a entrada na guerra, o tratamento destinado aos “súditos do Eixo” no país saiu do círculo das questões nacionais para projetarse como um dos elementos de negociação no plano da política internacional, servindo, inclusive, de interseção entre os interesses internos e externos. No contexto do conflito mundial e da política do Estado Novo, alemães, italianos e japoneses foram levados aos campos de concentração brasileiros como prisioneiros de guerra.

Propomos aqui, então, apresentar como o internamento dos “súditos do Eixo” no Brasil foi discutido no interior dos gabinetes do governo Vargas. Tendo em vista as diferentes posições políticas assumidas pelos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça e Negócios Interiores no período do Estado Novo, percebese, pela correspondência entre gabinetes, encontrada nos acervos diplomáticos do Itamaraty, no Rio de Janeiro, que essas autoridades não apenas divergiam quanto a esse tratamento, como não sabiam como categorizar os “súditos do Eixo” diante das questões nacionais de perseguição ao estrangeiro e de questões internacionais de internamento de prisioneiros civis.

Essas duas instâncias governamentais foram responsáveis por administrar internamente e negociar no campo das relações internacionais o tratamento dado aos “súditos do Eixo” no Brasil, como uma das peçaschave do alinhamento brasileiro com os Aliados. Nesse sentido, os objetivos aqui são: analisar as diferentes posições políticas assumidas pelos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça e Negócios Interiores no tratamento e regulação da situação dos “súditos do Eixo”, internados em campos de concentração brasileiros, entre 1942 e 1945, de modo a verificar as fissuras políticas que existiam no governo durante a Segunda Guerra, no momento do alinhamento BrasilAliados e da necessidade de internar civis, estrangeiros do Eixo, no Brasil.

Cada gabinete ministerial, com seus interesses políticos e divergentes no interior do governo Vargas, voltou sua pasta para a articulação de normas, medidas e ações para o internamento de alemães, japoneses e italianos. Os ministros e seus assessores debateram sobre as definições de prisioneiros de guerra e a difícil decisão de quem, entre esses estrangeiros, deveriam internar no Brasil, tendo sempre a Convenção de Genebra de 1929 como limitadora de algumas de suas vontades e ações. Com a criação de campos de concentração brasileiros e o confinamento de civis como prisioneiros de guerra, abriuse no interior do governo uma discussão que nos permite perceber as divergências de posições, as cisões e os embates de políticos num momento de desarticulação do Estado Novo.

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A convenção de genebra de 1929 para prisioneiros de guerra

Durante a Segunda Guerra Mundial, a proteção de civis e o internamento de estrangeiros em território beligerante não dispunham de normatização. Todavia, a Conferência de Genebra, de 27 de julho de 1929, para melhoria da sorte dos feridos e enfermos nos exércitos em campanha e relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra, foi estendida aos civis, de acordo com o princípio de reciprocidade entre os vários países signatários da Europa, da América e da Ásia.4 Os países beligerantes apoiaramse na Convenção de Genebra de 1929 para definirem o tratamento dispensado aos prisioneiros. Signatário da mesma, o Brasil ratificou a legislação com o Decreto nº 22.435, de 7 de fevereiro de 1933, quando as normas definidas em Genebra passaram a vigorar em nosso país.

Tal Convenção considerava como prisioneiros de guerra os feridos ou enfermos que caíssem em poder dos beligerantes e os indivíduos pertencentes às Forças Armadas das partes inimigas capturados durante as operações de guerra. E, como foi mencionado, não havia resoluções a respeito dos internos...

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