Problemas no paraíso: fenomenologia do atraso e o 'sentimento brasileiro do mundo'

AutorSaulo Pinto Silva
CargoEconomista. Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: saulo.pinto@
Páginas464-479
PROBLEMAS NO PARAÍSO: fenomenologia do atraso e o sentimento brasileiro do mundo
Saulo Pinto Silva
1
A aldeia de Hollywood foi planejada de acordo com a noção
Que as pessoas desse lugar fazem do Paraíso. Nesse lugar
Elas chegaram à conclusão de que Deus,
Necessitando de um Paraíso e de um Inferno, não precisou
Planejar dois estabelecimentos, mas
Apenas um: o Paraíso. Que esse,
Para os pobres e infortunados, funciona
Como inferno.
Bertolt Brecht, Elegias de Hollywood.
Resumo
O ensaio propõe debater os problemas relativos aos impasses estruturais da formação da sociedade brasileira, tentando
refletir a ideologia do atraso como um modelo básico de explicação das contingências das ausências do presente e do seu
encontro com o futuro prometido. Retoma a simbiose entre o moderno e o arcaico para tentar explicar as conexões entr e
economia e política à guisa das formas de dominação instituídas desde o regime da Colônia ao Imp ério à República.
Palavras-chaves: Problemas no Paraíso. Atraso. O sentimento brasileiro do mundo.
PROBLEMS IN PARADISE: phenomenology of delay and the “Brazilian feeling of the wo rld”
Abstract
The essay proposes to debate the problems related to the structural impasses in the formation of Brazilian so ciety, trying to
reflect the ideology of backwardness as a basic model for explaining the contingencies of the absen ce of the present and its
encounter with the promised future. It retakes the symbiosis between the modern and the archaic to t ry to explain the
connections between economy and politics in the guise of the forms of domination instituted from th e Colony regime to the
Empire to the Republic
Keywords: Problems in Paradise. Delay. The Brazilian feeling of the world.
Artigo recebido em: 21/12/2020 Aprovado em: 25/05/2021
DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2178-2865.v25n1p464-479
1
Economista. Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor do Departamento
de Economia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: saulo.pinto@ufma.b r.
Saulo Pinto Silva
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1 INTRODUÇÃO: o objeto do “sentimento brasileiro do mundo”
Não é possível pensar o capitalismo global de uma perspectiva puramente brasiliana
não como uma relação imediata –, sem que, para isso, possamos considerar o “sentimento brasileiro
do mundo” como o problema ideológico básico. A questão é que o particular e o universal não estão
completamente distantes entre si, ou seja, o capitalismo aparece aqui como uma forma de capitalismo
muito específica digamos assim, numa versão não eurocêntrica , em que liberdade e igualdade são
abstrações apenas formais diante da preponderância do compadrio sistêmico. Aqui, a revolução nunca
chegou. Temos uma formação social truncada, híbrida e, sobretudo, marcada pela fusão da
“vanguarda” e da “retaguarda” do capitalismo em estado puro. Francisco de Oliveira seguindo a pista
de Norbert Elias –, insiste na tentativa de encontrar “o caráter brasileiro”, como “o peculiar modo
nacional de livrar-se de problemas ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro" (OLIVEIRA,
2018, p.138). É assim que a dominação social aparece pelo seu contrário, como elemento objetivo da
sua resistência. A vida pública nunca foi a transcendência da vida familiar, mas o seu alargamento. O
paradoxo é que nossa formação é marcada pela intimidade como afeto político preponderante, como a
fórmula anti-weberiana decisiva que funda o “sentimento brasileiro do mundo”. O exemplo primordial
disso é o Carnaval com evento simbólico inconteste. Temos relações sociais carnavalizadas que
ordenam nossos vínculos sociais, da estrutura micrológica mais próxima ao universalismo das relações
sociais mais abrangentes:
Ou podemos considerar o Brasil atual, on de pessoas de todas as classes dançam juntas nas
ruas durante o Carnaval, e squecendo-se por alguns instantes das diferenças de raça e
classe mas obviamente não é a mesma coisa um desempr egado entregar-se à dança,
esquecendo-se de suas preocupações com o sustento da família, e um rico banqueiro soltar-
se e sentir-se bem por ser mais um no meio do povo, esquecendo-se de que talvez tenha
recusado um em préstimo para um trabalhador pobre. Os dois são iguais na rua, mas o
trabalhador dança sem leite, enquanto o banqueiro dança sem creme (ŽIŽEK, 2013a, p.
454).
O impasse é que no Brasil, o Carnaval funciona como a suspensão absoluta dos
antagonismos em nível ideológico , em que tudo é permitido e os papéis sociais são subtraídos para
aparecerem na sua forma ideológica mais obscena. Aliás, para falar em ideologia, o que temos aqui é a
obscenidade como objeto ideológico primordial. Podemos verificar isso quando somos confrontados
com a ironização da violência brutal sofrida pelas classes subalternizadas, subentendida como
participante do enredo de “normalidade” em que apesar de tudo, “somos felizes”. A felicidade do sujeito
desdentado, com bolsos furados e com uma expectativa de futuro contingente à sobrevivência
cotidiana. Não estaríamos aqui diante do impasse estrutural básico do espírito brasileiro do mundo?
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