O processo de curatela a partir do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Código de Processo Civil de 2015

AutorAline Araújo Passos e Letícia Ladeira Sirimarco
Ocupação do AutorDoutora e mestre em Direito das Relações Sociais (subárea Processo Civil), pela PUC-SP/Bacharel em Direito pela UFJF
Páginas601-642
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O PROCESSO DE CURATELA A PARTIR DO ADVENTO DO
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E
DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Aline Araújo Passos1
Letícia Ladeira Sirimarco2
Sumário: 1. Aspectos introdutórios à análise da curatela; 2. A evolução
da esfera existencial da curatela; 3. As alterações sofridas pelo processo
de curatela; 3.1 Natureza jurídica; 3.2 Legitimidade ativa; 3.3
Competência; 3.4 Principais aspectos do procedimento para nomeação
de curador; 3.5 A sentença no processo de curatela; 4. O impacto no
cabimento da curatela; 4.1 A questão patrimonial como elemento de
cabimento da curatela; 5. Conclusão; Referências.
1. Aspectos introdutórios à análise da curatela
A pessoa com deficiência, a partir do fim da Primeira Guerra
Mundial, era vista sob a perspectiva do modelo médico-reabilitador, que
tratava a deficiência como um problema patológico e individual da
pessoa, considerando-a, muitas vezes, incapaz para a vida em sociedade.
Nesse sentido, os institutos de apoio criados para a pessoa com
deficiência possuíam caráter assistencialista e visavam à reabilitação e
normalização da pessoa, a fim de torná-la apta ao convívio social.
A mudança de paradigma se anunciou no final do século XX e se
consolidou no início do século XXI, com a adoção do modelo social que
1 Doutora e mestre e m Direito das Relações Sociais (subá rea Processo Civil), pela
PUC/SP. Professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora. Coordenadora do
Núcleo de Direitos das Pessoas com Deficiência da UFJF. Advogada.
2 Bacharel em Direito pela UFJF. Colaboradora do Núcleo de Direitos das Pessoas com
Deficiência da UFJF. Advogada.
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celebra a sociedade plural e reconhece as diferenças e a diversidade
humana como um verdadeiro valor. O modelo reconhece as barreiras
sociais como sendo as principais causas de exclusão das pessoas com
deficiência, uma vez que a sociedade e o Estado não oferecem os meios,
serviços e instrumentos adequados para a efetiva inclusão dessas
pessoas.
O modelo em tela traduz importantíssima conquista social na luta
pela concretização da dignidade da pessoa humana com deficiência, a
partir do seu reconhecimento como pessoa merecedora de igualdade de
direitos e de condições.
A consagração do modelo social se deu com o advento da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD),
promulgada pela ONU em 2007 e ratificada no Brasil pelo Decreto nº
186/2008, com quórum qualificado de três quintos nas duas casas
legislativas, em dois turnos, conforme previsto no art. 5º, §3º, da
Constituição Federal, alcançando hierarquia de emenda constitucional.
Por meio do Decreto Presidencial nº 6.949/2009, o Presidente da
República sancionou o mencionado decreto legislativo, cumprindo o
procedimento aplicável aos tratados internacionais.
A Convenção acolheu a concepção de deficiência como uma
questão de direitos humanos e interligada às limitações sociais,
estabelecendo, em seu preâmbulo, alínea e, que a deficiência é resultado
da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e
geográficas que impedem a plena e efetiva participação na sociedade em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Objetivando a aplicação ampla e efetiva da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil, restou elaborado e
publicado o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), também
conhecido como Lei Brasileira de Inclusão: Lei nº 13.146, de 6 de julho
de 2015, diploma normativo multidisciplinar, que possui mais de cem
artigos e que trouxe profundas alterações para o ordenamento jurídico
pátrio ao estabelecer uma nova sistemática de proteção e promoção dos
direitos das pessoas com deficiência.
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O Estatuto da Pessoa com Deficiência objetiva, em apertada
síntese, promover e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência,
seja esta de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Com base
no Estatuto, à luz do artigo 12 da CDPD, restou reconhecido que as
pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de
condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida, adotando
a curatela como medida excepcional e personalíssima de apoio às
pessoas com deficiência para o exercício de sua capacidade legal.
Logo após o início da vigência do Estatuto da Pessoa com
Deficiência, que se deu em 02 de janeiro de 2016, entrou em vigor o novo
Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), em 18 de março do
mesmo ano, o qual, aparentemente sem um diálogo mais estreito com o
Estatuto, trouxe modificações substanciais ao processo de curatela,
inclusive, em alguns casos, revogando as disposições incluídas pelo
mencionado Estatuto no Código Civil.
A curatela é medida de proteção e apoio à pessoa declarada
relativamente incapaz sobre atos patrimoniais e negociais. Segundo o
Código Civil, a medida pode recair sobre aqueles que, por causa
transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, sobre os
ébrios habituais e os viciados em tóxico, sobre os pródigos e o nascituro.
Embora o processo seja o mesmo para as diferentes hipóteses
mencionadas, o presente artigo busca examinar as mudanças de
paradigma em relação à curatela da pessoa com deficiência, razão pela
qual a ela será dado especial enfoque.
O escopo deste artigo, assim, é analisar as alterações do processo
de curatela a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Código
de Processo Civil de 2015, examinando a função protetora do instituto
na defesa do patrimônio do curatelando, sem perder de vista a autonomia
individual das pessoas com deficiência, sobretudo no que tange aos atos
de caráter existencial.
Para tanto, o recorte metodológico proposto para a análise das
alterações terá como pano de fundo o exercício da autonomia privada das

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