Processo Judicial como Espelho da Realidade? Notas Hermenêuticas à Teoria da Verdade em Michele Taruffo

AutorLenio Luiz Streck
CargoUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil
Páginas115-135
Processo Judicial como Espelho da Realidade?
Notas Hermenêuticas à Teoria da Verdade em
Michele Taruffo
Judicial Process as Mirror of Reality? Hermeneutical Notes to the Theory of
Truth in Michele Taruffo
Lenio Luiz Streck
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS, Brasil
Resumo: Este trabalho trata da questão da ver-
dade no Direito, mais especificamente: do sta-
tus epistemológico do processo judicial. Em
abordagem fenomenológica, neste artigo objeti-
va-se aclarar a relevância da apuração dos fatos
para a resposta correta. Procede-se comparati-
vamente entre dois referenciais: o realismo crí-
tico de Michele Taruffo e a Crítica Hermenêu-
tica do Direito. Constata-se sua aproximação
democrática, mas uma profunda divergência
quanto ao que se entende por controle intersub-
jetivo das decisões judiciais. Conclui-se rejei-
tando a estruturação “truth acquiring” do siste-
ma de justiça nos termos propostos por Taruffo.
Palavras-chave: Processo Judicial. Verdade.
Hermenêutica.
Abstract: This paper deals with the
question of truth in law, more specifically:
the epistemological status of judicial
process. In a phenomenological approach,
aims to clarify the importance of facts to
the right answer. Proceeds comparing two
referentials: the critical realism of Michele
Taruffo and the Critical Hermeneutics of
Law. In spite of its democratic common
ground, there is a deep disagreement about
what is meant by inter-subjective control of
judgments. The conclusion drawn is to reject
the “truth acquiring” structure of justice
system as proposed by Taruffo.
Keywords: Judicial Procedure. Truth. Herme-
neutics.
Recebido em: 23/06/2016
Revisado em: 31/07/2016
Aprovado em: 09/08/2016
http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2016v37n74p115
116 Seqüência (Florianópolis), n. 74, p. 115-136, dez. 2016
Processo Judicial como Espelho da Realidade? Notas Hermenêuticas à Teoria da Verdade em Michele Taruffo
1 Introdução
Este artigo trata da questão da verdade no Direito, mais especifi-
camente: do status epistemológico do processo judicial. A esse respeito,
vem se destacando no Brasil o realismo crítico do Professor italiano Mi-
chele Taruffo (TARUFFO, 2012), em que defende a estruturação “trutha-
cquiringdo sistema de justiça. Enfatiza, aí, a importância da apuração
dos fatos para correção do julgamento.
De outra parte, é conhecida a cruzada que faço a partir da Crítica
Hermenêutica do Direito1 – CHD (STRECK, 2013) pela resposta correta
1 A Crítica Hermenêutica do Direito, fundada por mim ao longo das obras Hermenêutica
Jurídica e(m) crise e Verdade e Consenso, é uma espécie de cadeira assentada entre o
SDUDGLJPD REMHWLYLVWD FOiVVLFR H GD ¿ORVR¿D GD FRQVFLrQFLD HRX GH VXDV YXOJDWDV
voluntaristas). A CHD move-se nas águas da fenomenologia hermenêutica, pela qual o
horizonte do sentido é dado pela compreensão (Heidegger) e ser que pode ser compreendido
é linguagem (Gadamer), onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte
aberto e estruturado e a interpretação faz surgir o sentido. O fato de as palavras da
lei serem ambíguas (polifonia) não quer dizer que o processo hermenêutico admita
discricionariedades e decisionismos. É possível encontrar respostas corretas em direito,
conforme a criteriologia que se explicita em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica
(4ª. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014). Com a CHD, busca-se apresentar um
IHUUDPHQWDOSDUDDLQWHUSUHWDomRGRGLUHLWR3DUDWDOXVDVHFRPR¿RFRQGXWRUR³PpWRGR´
fenomenológico, visto, a partir de Heidegger, como “interpretação ou hermenêutica
universal”, é dizer, como revisão crítica dos temas centrais transmitidos pela tradição
¿ORVy¿FD DWUDYpV GD OLQJXDJHP FRPR GHVWUXLomR H UHYROYLPHQWR GR FKmR OLQJXtVWLFR
da metafísica ocidental, mediante o qual é possível descobrir um indisfarçável projeto
de analítica da linguagem, numa imediata proximidade com a práxis humana, como
existência e faticidade, em que a linguagem – o sentido, a denotação – não é analisada num
sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade. Enquanto baseado no
método hermenêutico-linguístico, o texto procura não se desligar da existência concreta,
nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada. A tarefa da
CHD é a de desenraizar aquilo que tendencialmente se encobre. Fincada na matriz teórica
originária da ontologia fundamental, busca, por meio de uma análise fenomenológica, o
des-velamento (Unverborgenheit) daquilo que, no comportamento cotidiano, ocultamos
de nós mesmos (Heidegger): o exercício da transcendência, no qual não apenas somos,
mas percebemos que somos (Dasein) e somos aquilo que nos tornamos através da tradição
(pré-juízos que abarcam a faticidade e historicidade de nosso ser-no-mundo, no interior
do qual não se separa o direito da sociedade, isto porque o ser é semp re o se r de um ente, e
o ente só é no seu ser, sendo o direito entendido como a sociedade em movimento), e onde

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT