O processo legislativo da união europeia: instituições e governança

AutorCicero Krupp da Luz
Páginas117-133
GOVERNANÇA, DÉFICIT DEMOCRÁTICO E PROCESSO LEGISLATIVO
EUROPEU
GOVERNANCE, DEMOCRATIC DEFICIT, AND THE EUROPEAN LEGISLATIVE
PROCESS
Cícero Krupp da Luz
1
Resumo: Dentro de uma ordem mundial proporcionada crescentemente por relações
multilaterais, a importância de normas internacionais suscita a questão da legitimidade e
déficit democrático da criação dessas normas. Dentro desse contexto, o debate sobre a
governança caminha em paralelo com a evolução de um processo legislativo
internacional, onde o Parlamento Europeu é o exemplo a ser discutido.
Palavras-chave: Processo legislativo internacional, governança global, parlamento
europeu, bens públicos globais, democracia.
Abstract: Within a world order increasingly provided by multilateral relations, the
importance of international standards raises the question of legitimacy and democratic
deficit of the creation of those norms. In this context, the debate on global governance is
intertwined with the evolution of an international legislative process, where the
European Parliament is the example to be discussed.
Keywords: international legislative process, global governance, european parliament,
global public goods, democracy.
Considerações iniciais
Os conceitos e a realidade se entrelaçam no momento em que está em jogo a
formação da nova ordem global. A difusa conjuntura entre o fim da bipolaridade do
poder, o avanço da globalização econômica e tecnológica, a crescente preocupação com
direitos humanos e meio ambiente forjam a emergência de uma multipolaridade
complexa, onde o conceito de democracia é o canal de comunicação com esse novo
mundo. Contudo, ao mesmo tempo em que a noção de democracia nas relações
internacionais ganha importância, encontra dificuldades ao serem compreendidas
apenas como realistas, idealistas ou institucionalistas. Novos atores, com diferentes
instituições e maiores informações representam mudanças em conceitos de democracia,
e de governo, dando lugar à governança.
No presente artigo, iremos propor na primeira parte um debate sobre conceito de
governança: polissêmico e controvertido na literatura de relações internacionais. Em
contraposição ao realismo estrutural que prevê o Estado como ator soberano e
incontestável, a governança busca trazer noções de participação de múltiplos atores,
deslocando o eixo “estatal” hierárquico para uma heterarquia de diferentes níveis,
transformando a tomada de decisão para uma forma mais democrática. Essa crescente
participação é uma resposta ao déficit democrático de organizações internacionais.
Essa preocupação com o grau democrático das organizações internacionais surge
no momento em que essas organizações buscam e conquistam cada vez mais poder e
1 Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo USP. Mestre em Direito
Público. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Pesquisador
visitante da Sciences Po Paris LInstitut dÉtudes Politiques (IEP). Participante do Programa da
Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung para Cooperação Estratégica entre Brasil e União Europeia. E-mail:
ciceroluz@gmail.com.
atuação num mundo globalizado. Com maiores poderes, maior responsabilidade e
necessidade de legitimação e, até mesmo, de enforcement. Assim, o debate da
governança também passa por formas de legitimidade e accountability. Por isso, na
segunda parte do artigo, as estruturas jurídicas e políticas em torno do déficit
democrático e accountability serão os temas centrais da literatura debatida.
Nesse contorno, a ordem internacional passa por um movimento de impulsos
circulares: a governança vem para suprir uma lacuna democrática que surge pelo novo
protagonismo de instituições internacionais, onde Estados não têm mais o mesmo papel
de monopólio de poder e, desse modo, faz-se necessário ter uma maior participação
social. Essa participação é ampliada por aberturas de comunicação das organizações
internacionais pela participação da sociedade civil e por novos parlamentos
internacionais.
Os parlamentos internacionais não são um fenômeno recente, a novidade está no
seu crescente protagonismo e poder dentro da conjuntura mundial como uma forma de
governança. O processo legislativo internacional é a forma na qual instituições
normativas são consolidadas no seio da ordem global, tradicionalmente por meio de
tratados internacionais realizados por Estados soberanos. Contudo, a produção dessas
normas não são estudadas com vistas ao déficit democático de que normalmente
decorrem: do acordo do Poder Executivo nacional (Ministério das Relações Exteriores)
com a anódina aprovação do Poder Legislativo.
Sobretudo nas perspectivas regionais e transnacionais, há mudanças muito
significativas no processo legislativo internacional. Como estudo de caso, será
examinado na última parte do texto, o exemplo do processo legislativo do Parlamento
Europeu, que contém uma série de elementos institucionais de governança, como
atribuições participativas e representativas na tentativa de diminuição do déficit
democrático.
Portanto, o debate proposto terá tanto um enfoque neoinstitucionalista, haja vista
o debate das instituições da União Europeia, principalmente o Parlamento Europeu,
tanto quanto visões construtivistas, por sua vez muito utilizadas na literatura de
governança. Com esse plano, esperamos contribuir para uma reflexão inovadora para o
sentido do processo legislativo internacional produzido por parlamentos regionais
dentro da discussão de governança global.
1 Governança: uma heterarquia de conceitos, para uma hierarquia de bens
comuns globais
Definir um conceito para a governança não é um exercício simples, porém esse
esforço parece uma prática saudável. Governança e globalização nasceram na época de
maior crescimento de produção científica que o planeta já presenciou. Isso explica, em
parte, o seu contexto. Um contexto de grande aumento de informações, no nosso caso,
de informações sobre e geradas por instituições internacionais de diferentes níveis:
governamentais, não governamentais, mundiais, regionais ou locais.
Por mais paradoxal que possa soar, há um consenso sobre a pluralidade de
conceitos sobre governança. Embora isso não diga muita coisa, outros possíveis
consensos, como a falta de democratização de organizações internacionais, aumento da
participação da sociedade civil também têm um papel importante na clareza do
conceito. Mas quanto mais avançamos, mais evidente tornam-se imprecisões nas
relações entre pressupostos da governança, como governo, Estado e organizações
internacionais, legitimidade e democracia. Por isso, durante o texto vamos propor um

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