Psicologia: uma concepção histórico-filosófica

AutorClara Virginia Pinheiro - Ricardo Augusto de Oliveira
Páginas318-333

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Introdução

Neste* texto, quer-se desenvolver uma concepção histórico-filosófica da psicologia a partir de Michel Foucault em As palavras e as coisas . Tal concepção, que considera “[...] a psicologia [...] como forma cultural” (FOUCAULT, 2002, p. 220) humanista, põe em xeque a visão positivista da psicologia, definida pelo autor “[...] como ciência, digamos, da alma, ou como ciência da consciência, ou ainda como ciência do individuo” (FOUCAULT, 2002, p. 222), e que se traduz como verdade objetiva e substancial do discurso sobre o psíquico.

Para apreender a perspectiva de psicologia em Foucault, que se constitui como estudo sobre as representações do homem acerca de sua existência como ser vivo, percorre-se o próprio itinerário desse filósofo, que torna efetivo seu raciocínio arqueológico e, como conseqüência,Page 319permite a emergência desse novo conceito. Nesse itinerário, num primeiro ponto, discute-se o conhecimento ocidental renascentista, século XVI e início do século XVII, em que a episteme é Deus-semelhança. O que isso quer dizer? Considere-se em poucas palavras. O princípio discursivo renascentista é a semelhança entre as coisas, e a semelhança fundamental é divina. Além disso, tal discursividade tem caráter concreto ou o ser do discurso – tanto fundante quanto desdobramento – é coisa e é divino ao mesmo tempo. Desta feita, não é possível a ciência psicológica, pois seu objeto-homem ainda não está formatado no espaço do saber.

Num segundo momento, desenvolve-se a episteme ocidental clássica, meados do século XVII até o final do século XVIII, que está no domínio do Deus-representação. São tematizadas a linguagem e a origem do conhecimento segundo Descartes. Em outros termos, o princípio discursivo em questão é de natureza representacionista, sendo Deus a representação-mor. As coisas, portanto, não ganham legitimidade nelas mesmas, mas no domínio das idéias, e a idéia-fundamento e a conseqüente são divinas. Como conseqüência dessas reflexões, também nesses séculos ocidentais não é possível psicologia, já que não se tem a matéria-prima homem sobre a qual se podem formatar antropologias ou reflexões humanistas, dentre as quais está o próprio discurso psicológico.

Num terceiro tempo, questiona-se o nascimento do homem moderno a partir do século XIX, no espaço discursivo, tanto no domínio da linguagem e da natureza quanto no domínio filosófico kantiano e póskantiano, que é solo para o nascimento das ciências humanas, inclusive da própria psicologia, ou melhor, a realidade discursiva nesse momento não é divina, mas humana. O homem, pois, tanto é substrato objetivo como subjetivo dos discursos. Assim, já existe um solo humanista sobre o qual se pode erguer, por exemplo, a psicologia moderna, que corresponde a um domínio de reflexões sobre o homem que representa seu próprio funcionamento como ser vivo. Complementando a discussão, toma-se, na forma de considerações finais, o espaço das ciências humanas, particularmente a psicologia, ainda no século XIX, e o domínio discursivo – psicanálise, literatura e filosofia de Nietzsche –, que opera o desmonte do elemento homem desse espaço científico e também dos outros discursos da Modernidade ocidental, possibilitando a constituição de uma episteme não humanista.

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Esclarecendo, nos termos finais, apresenta-se a formatação do espaço das ciências humanas, que é fronteira entre os discursos científicos e filosóficos humanistas, salientando-se, é claro, a ciência psicológica – discurso acerca das representações do homem sobre sua vida. Ademais, discute-se o desmoronamento histórico desse espaço, por meio da constituição dos discursos que engendram outro princípio discursivo.

O mundo da semelhança

No domínio discursivo ocidental renascentista – século XVI e início do século XVII – não era possível psicologia. Não existia ainda a tematização do homem tal qual se conhece a partir do século XIX, que é base para as reflexões humanistas (sociologia, psicologia e análise da literatura e dos mitos). O que se tem não é da ordem humana, mas divina. Deus está em todas as partes do mundo, conforme a configuração discursiva quinhentista. Como se pode dizer o fio discursivo fundamental do quinhentismo do ocidente a partir de Foucault, em As palavras e as coisas ?

Todos os discursos ocidentais, quando reduzidos a seu elemento essencial, são produzidos e produzem a matéria-prima chamada Deussemelhança. Em última instância, as coisas são, para o domínio quinhentista discursivo, semelhantes entre si, as palavras valem como coisas – e, portanto, também se assemelham entre si – e, por fim, as coisas e as palavras têm a mesma qualidade: são semelhanças. Além disso, uma propriedade fundamental do reino da semelhança é ser divino, ou seja, as palavras são semelhantes entre si, as coisas são semelhantes entre si, as palavras são semelhantes às coisas e, no fundo de tudo isso, o divino sustenta a semelhança existente.

Expressando isso de outro modo, tem-se que a análise dos discursos ocidentais do século XVI e início do século XVII, em As palavras e as coisas , demonstra que o Deus-semelhança é a base dos discursos. Além disso, constata-se que a qualidade desse Deus-semelhança discursivo é ser “empiricidade”, coisa mesma. Desta feita, a linguagem ocidental quinhentista é semelhança divina e sua matéria básica é coisa. Como os discursos das coisas ( divinatio ) dizem as semelhanças entre elas? Como a interpretação dos textos antigos ( eruditio ) dizem a semelhança das coisas? Aprofunde-se o primeiro ponto.

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Fazer “ciência” ( divinatio ) pela interpretação da semelhança entre as coisas ou fazer “filosofia” ( eruditio ) pela interpretação da semelhança entre as coisas dispostas nos textos dos antigos são maneiras renascentistas de conhecer o mundo. Tanto o conhecimento indireto ( eruditio ) como o direto ( divinatio ) precisam, em última instância, das coisas mesmas e de seus sinais de semelhança (assinalações), a fim de se confirmar a natureza semelhante das coisas. Em outras palavras, “O renascimento ainda compreendia seu saber como uma ‘interpretação de signos’, a relação do signo com aquilo que significa estando coberta pelo rico domínio das ‘similitudes’” (DELEUZE, 2002, p.125). A natureza das similitudes das coisas é disposta mediante as assinalações, que são sinais externos próprios às coisas que identificam o parentesco entre elas. Tal parentesco de superfície atesta uma semelhança em toda a extensão profunda das coisas.

Ainda, tal similitude de profundidade e mesmo a de superfície podem ser desdobradas segundo quatro formas da semelhança (as mais importantes, de acordo com Foucault): convenientia , aemulatio , analogia e simpatia. Não é o caso de desdobrá-las, pois não se quer detalhar mais ainda o primeiro ponto. Essas formas, no entanto, podem aparecer na superfície, sendo chamadas de assinalações, e mesmo aparecer na profundidade das coisas. São formas diferentes de semelhança, mas que se articulam e permitem compor a semelhança das coisas do mundo ou o campo das coisas divinas e semelhantes, e que são traduzidas pelas palavras do conhecimento ( divinatio e eruditio ) em continuidade absoluta. De tal forma, para fechar esse ponto, tem-se palavras como coisas, coisas que são demasiado concretas e divinas.

Nesse domínio discursivo, não há o homem moderno e, conseqüentemente, a psicologia moderna, que é uma das reflexões sobre esse homem. Há um homem feito semelhança, que é coisa e é divino ao mesmo tempo, e tudo isso é posto via dois modos discursivos quinhentistas: divinatio e eruditio .

O mundo da representação

Esse quadro discursivo renascentista desorganizou-se em meados do século XVII. A partir de então, até o...

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