Serviço público e poder de polícia : concessão e delegação

AutorProf. Celso Antônio Bandeira de Mello
CargoProfessor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo.
Páginas1-11

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  1. Registre-se desde logo que, em linguagem leiga, muitas vezes usase a palavra "serviço" para nomear qualquer atividade estatal desenvolvida em relação a terceiros.

    Assim, por exemplo, a construção de uma estrada, de uma ponte, de um túnel, de um viaduto, de uma escola, de um hospital ou a pavimentação de uma rua, pode aparecer, a pessoas estranhas à esfera jurídica, como sendo um "serviço que o Estado desempenhou" - um "serviço público".

    Sem embargo, para o Direito, estes cometimentos estatais não são serviços. São obras públicas. Com efeito, obra pública é a construção, reparação, edificação ou ampliação de um bem imóvel pertencente ou incorporado ao domínio público. Por isto, o Colendo Supremo Tribunal Federal recusa, como é lógico, validade a "taxas" instituídas em decorrência da realização de obras públicas (por não serem serviços públicos), as quais só podem ensejar contribuição de melhoria, se ocorrer a hipótese de sua incidência (RE 72.751, RS, 18.10.72; RE 71.010, RTJ. 61/160; RE 74.467, RTJ 63/829; RE 75.769, de 21.09. 73; RE 72.751, de 1973)

    De fato, serviço público e obra pública distinguem-se com grande nitidez e o Direito acolhe tal disseptação, como acima se referiu. Basta considerar que (a) a obra é, em si mesma, um produto estático; o serviço é uma atividade, algo, dinâmico; (b) a obra é uma coisa : o produto concretizado de uma operação humana; o serviço é a própria operação ensejadora do desfrute; (c) a fruição da obra, uma vez realizada, independe de uma prestação, é captada diretamente, salvo quando é apenas o suporte material para a prestação de um serviço; a fruição do serviço é a fruição da própria prestação, assim depende sempre integralmente dela; (d) a obra, para ser executada, não presume a prévia existência de um serviço; o serviço público, normalmente, para ser prestado, pressupõe uma obra que lhe constitui o suporte material. Page 2

    Assim, não há confundir obra pública e serviço público.

  2. Igualmente, a expressão "serviços" (ensejando a suposição de que seriam "serviços públicos) é utilizada em sentido natural - e não técnicojurídico - para nomear atividades industriais ou comerciais que o Estado desempenha basicamente sob regime de direito privado - antítese do que ocorre com o serviço público - por se constituírem em exploração de atividade econômica, isto é, atividades ubicadas em setor reservado aos particulares, à iniciativa privada - igualmente antítese do que ocorre com o serviço púbico -, pois, conforme dispõe o art. 173: "Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só é permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei" . Aliás, por isto mesmo, o parágrafo primeiro, inciso II, do aludido artigo estabelece para as estatais que exploram atividade econômica "sujeição ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias"1.

    A separação entre os dois campos - serviço público, como setor pertencente ao Estado e domínio econômico, como campo reservado aos particulares - é induvidosa e tem sido objeto de atenção doutrinária, notadamente para fins de separar empresas estatais prestadoras de serviço público das exploradoras da atividade econômica, ante a diversidade de seus regimes jurídicos 2.

    Donde, não há confundir serviços públicos com atividades econômicas desempenhadas empresarialmente pelo Estado, pois sues regimes são inteiramente diversos.

  3. Finalmente, para o leigo, podem aparecer como "serviços" e, portanto, serviços públicos, as perícias, exames, vistorias efetuadas pelo Estado ou suas entidades auxiliares com o fito de examinar o cabimento da liberação do exercício de atividades privadas, ou com o propósito de fiscalizarlhes a obediência aos condicionamentos da liberdade e da propriedade ou com Page 3 a finalidade de comprovar a existência de situações que demandariam a aplicação de sanções (como multas, interdição de atividades ou embargo de suas continuidades até que estejam ajustadas aos termos normativos). Este tipo de atividade usualmente é designado entre nós como "polícia administrativa".

    Sem embargo, tal espécie de atuação estatal tem, até mesmo, sinalização oposta à de serviço público. Deveras, enquanto este último se constitui em uma oferta de utilidades a cada qual dos administrados, ampliando-lhes assim suas esferas de desfrute de comodidades, as medidas em questão, inversamente, visam (em nome, é certo, do bem estar de todos) restringir, limitar, condicionar as possibilidades de atuação livre das pessoas, fiscalizá-las e penalizar os comportamentos infracionais, a fim de tornar exeqüível um convívio social ordenado.

    A confusão que alguns fazem entre elas ocorre sobreposse quando estas providências limitadoras estejam radicalizadas sob titulações genéricas, tais as de "coordenação", "articulação", "gerenciamento" e quejandas. Estas dicções vagas - diga-se de passagem - vieram a disseminar-se amplamente entre nós a partir do momento em que, lamentavelmente, economistas e administradores ganharam incompreensível prestígio, ao ponto de lhes ser atribuída a redação de textos legislativos. Despreparados para tal mister, jejunos na linguagem técnica do Direito e inscientes da necessidade de precisão comunicativa que este demanda, introduziram uma terminologia fluida, altamente imprecisa e, sobretudo, carente de referenciais jurídicos já estabelecidos.

    O uso desta terminologia vaga é propício a engendrar equívocos entre os menos avisados, pois os coloca perante expressões que, em Direito, carecem de especificação. Em face delas cumpre, então, que o exegeta, mais que nunca, volte diretamente sua atenção ao conteúdo regulado por leis ou atos que se servem das mencionadas rotulações, advertido de que nelas nada encontrará de útil para identificar os institutos jurídicos aí disciplinados, mas apenas uma fonte de obscuridade.

    Feitas estas advertências em relação ao uso promíscuo da palavra "serviço" e, consequentemente, dos enganos que, por obra de leigos, faz refluir sobre a noção de serviço público, cumpre verificar e do modo mais simples possível qual sua acepção própria em nosso Direito, deixando de lado outros questionamentos que historicamente se puseram, quais os atinentes às suas acepções subjetiva, objetiva e formal3.

  4. Serviço público, em sentido técnico jurídico, é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestada pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um Page 4 regime de direito público - portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais - instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo4.

    Consiste na prestação de uma utilidade ou comodidade material, como oferecimento de água, luz, gás, telefone, transporte coletivo, tratamento da saúde, ministério de ensino etc. Esta oferta é feita aos administrados em geral. Daí falar-se, com razão, no princípio da generalidade do serviço público. Diz respeito a necessidades ou comodidades básicas da Sociedade. Por isso CIRNE LIMA o conceituou como "o serviço existencial à sociedade ou, pelo menos assim havido num momento dado, que, por isso...

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