Orçamento público: uma visão analítica

AutorCelso de Barros Correia Neto
CargoDoutorando em Direito pela USP. Advogado.
Páginas303-326

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1. Introdução

Este é um trabalho sobre orçamento público. Seu propósito é compreender os sentidos que as leis orçamentárias adquirem no contexto institucional brasileiro e, se possível, procurar uma alternativa de interpretação que não as converta em mera peça ficcional.

No estágio atual, a leitura dos diplomas orçamentários, focada sobre o viés do gasto público, frequentemente leva à redução de se supor que há apenas duas alternativas excludentes - ou o orçamento obriga, ou é ineficaz; ou é lei material, ou é lei formal.

Pretendemos aqui traçar um caminho diferente. Inicialmente, situamos a discus-são com base na controvérsia sobre o teor "formal" e/ou "material" das leis orçamentárias - aí incluídos o Plano Pluria-nual, a Lei de Diretrizes e a Lei Orçamentária Anual -, ressaltando os efeitos práticos a que conduzem as duas teses. Em seguida, abordamos a posição do STF e a PEC n. 281/2008, que propõe um modelo de orçamento público de execução imposi-tiva como o único caminho para se construir uma legislação orçamentária socialmente eficaz. Será essa a única solução para a eficácia do orçamento público no Brasil?

Se por detrás da despesa pública há sempre uma decisão política, então discutir o orçamento público é, a cada exercício financeiro, repensar o Estado (e a socieda-

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de) que temos. Na lei do orçamento, as decisões políticas formalizam-se, vestem-se de trajes jurídicos, mas sem eliminar seu conteúdo político. Sob a forma da lei, cada proposta de interpretação esconde uma decisão, uma tomada de posição, uma proposta de como agir.

2. Orçamento público: lei formal ou material? Notas de um velho debate

As questões implicadas na elaboração e na execução do orçamento público transcendem a esfera da academia: dizem respeito às opções políticas declaradas e concretizadas ou não pelo poder público. Discutir o orçamento público é, fundamentalmente, discutir as tarefas públicas que cada nível de governo cumpre ou deve cumprir.

Entre juristas, o debate assume uma feição aparentemente formal. Questiona-se a "natureza" do orçamento público, numa controvérsia permanente, que vem acompanhando toda a evolução da ciência das finanças e do direito financeiro. Hoje a discussão revigora-se pela inclusão de "novas" questões, como as vinculações orçamentárias e a proposta de criação de um orçamento inteiramente impositivo.

Tanto agora como antes, pode-se dizer que a controvérsia se desenvolve em torno de um problema central, que é o conteúdo da(s) norma(s) orçamentária(s). Elas obrigam ou apenas permitem? Atrás dessa pergunta de teor, aparentemente, formal, escondem-se questões cruciais para as finanças públicas e mesmo para a teoria do Estado: o equilíbrio entre os três Poderes e o papel atribuído ao poder público. Ao tomar partido no debate, consciente ou inconscientemente, os financistas posicionam-se também sobre esses dois pontos e, inevitavelmente, acabam emitindo opinião sobre aquela que julgam deva ser a função desempenhada pelo Executivo no Estado moderno, bem como os limites que o cingem.

De toda sorte, a disputa sobre o teor e o papel do orçamento deixa evidente sua posição central nas finanças públicas e no direito financeiro. É do cotejo entre o modelo orçamentário positivado, o orçamento anual e aquilo que dele efetivamente se executa - orçamento concretizado - que se percebe o real sentido da atuação do governo em determinado lapso de tempo.1 No orçamento público concretizado, congrega-se o feixe de decisões que constituem e dão sentido ao Estado. E aí é que estão seus verdadeiros objetivos políticos, para além dos valores e dos princípios declarados na Lei ou na Constituição, mas que não encontram suporte concreto na realidade institucional.

Por isso, a discussão que aqui pretendemos introduzir sobre o sentido e as possibilidades de efetivação do orçamento não se esgota no seu aspecto meramente formal: em leis, normas e órgãos públicos. Ao estudar o orçamento, estamos (re)pensando o próprio sentido do Estado: as expectativas que ele incorpora e os limites que o vinculam.2

2. 1 Orçamento público no Brasil: lei formal ou material?

Superadas as definições absolutamente vazias sobre o orçamento público, como mero documento contábil, que marcavam a posição dos primeiros estudiosos do tema, pode-se dizer que há, grosso modo, três posturas fundamentais sobre a matéria: 1) a dos que entendem que o orçamento é lei apenas em sentido formal; 2) a dos que aceitam tratar-se de uma lei em sentido material; e 3) entre os dois extremos, a dos que defendem posições inter-

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mediárias, compreendendo o orçamento como lei formal no tocante às despesas e material quanto às receitas.

Em parecer publicado em 1963, Francisco Campos critica o tratamento da lei orçamentária como "mero ato da administração", tal como então proposto pela doutrina de Laband; o orçamento público é "apenas um plano de gestão financeira", destituído de qualquer efeito jurídico para o Executivo ou para os indivíduos. Na visão de Campos, a norma orçamentária teria dupla eficácia. De um lado, "o Tesouro não poderá efetuar pagamento de nenhuma soma, ainda que a ela o indivíduo tenha direito em virtude de lei, contrato ou qualquer outro título jurídico, se do orçamento não constam os fundos necessários à satisfação da dívida"; de outro, "o Estado não pode exigir do indivíduo imposto, contribuição ou outra qualquer prestação tributária, se não figura como elemento da receita autorizada".3

Com base nisso, o autor afirma que, ao menos na segunda parte, que trata das receitas, o preceito orçamentário estaria, sim, endereçado à generalidade dos cidadãos, porque poderia ser invocada pelos contribuintes para se eximirem de obrigação tributária não inserida no orçamento. Não haveria, portanto, como negar à lei orçamentária seu conteúdo de lei material.

Na mesma linha vai o pensamento de Alberto Deodato e Geraldo Vidigal. Ambos defendem a natureza material do orçamento, em que pese Deodato tomar o aspecto das receitas para justificá-la, e não o das despesas, afirmando que "todo orçamento é um estado de previsão", seja ele público ou privado.4 Vidigal, por sua vez, menciona que o orçamento "autorizando despesas, veda ipso facto a gestão pública de serviços que não possam ser cobertos pelos gastos permitidos".5

Em sentido diametralmente oposto, Hely Lopes Meirelles via no orçamento público simples ato administrativo da espécie "ato-condição". Para o publicista, "não importa que, impropriamente, se apelide o orçamento anual de lei orçamentária ou de lei de meios, porque sempre lhe faltará a força normativa e criadora de lei propriamente dita".6 Tem apenas o aspecto formal de lei e, em boa técnica, poderia e deveria ser aprovado por decreto legislativo, segundo defende o autor.

Aliomar Baleeiro, por sua vez, explica que, do ponto de vista político, a lei orçamentária teve alterada sua finalidade no passar dos séculos. Numa primeira fase, o orçamento nasce com a função política de servir de "escudo para defesa dos contribuintes contra os governos", vistos como opressores e parasitários.7 Num segundo momento, além deste, a lei orçamentária ganha outro sentido: o de plano de ação do governo, instrumento de realização de determinado programa político.8 Para Baleeiro, modernamente, a função orçamentária de planejamento recebe tal importância que "o orçamento já não é apenas uma ato político: tende a envolver toda a economia nacional, inclusive o se-tor privado".9

Ante a legislação financeira portuguesa, António L. de Souza Franco conclui tratar-se o orçamento de um verdadeiro "plano" de atuação estatal, funcionando como "uma previsão de variáveis econômicas especificadas",10 no caso, receitas e despesas públicas. Embora reconheça o caráter imperativo das leis orçamentárias em relação aos órgãos e aos agentes do Estado,11 Sousa Franco afirma que "não regulam principalmente direitos e deveres como as normas leis materiais, mas po-

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dem criar ou reger direitos, obrigações e outras situações jurídicas".12

Héctor B. Villegas acredita que o interesse na questão reside apenas no plano abstrato, porquanto sua solução será encontrada no direito positivo de cada país. Cita como exemplo o direito brasileiro, explicando: "Não há dúvida, por exemplo, que no Brasil a lei orçamentária é uma lei formal, dado que segundo sua Constituição de 1967, a lei do orçamento não pode incluir 'disposição estranha à fixação de gastos e previsão de receitas' (art. 63), pelo qual o orçamento só deve limitar-se a calcular e autorizar, sem que seja lícito incluir disposições de outro tipo, e entre elas, as de caráter substancial".13

Entre os juristas da atualidade, Regis Fernandes de Oliveira sintetiza o problema na seguinte oposição: "O orçamento é peça que não vale nada, ou é conquista histórica de controle institucional e...

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