Todos querem legislar. Eagora?

AutorCassiana Alvina Carvalho
CargoProcuradora municipal, assessora de Câmaras de Vereadores, advogada, professora de Direito Eleitoral e de Direito Municipal, especialista em Direito Público, mestranda em direito pela URI – Santo Ângelo/RS.
Páginas71-84

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Introduzindo o tema

A constante atividade legiferante dos poderes constituídos mostra-se uma das constantes fontes de tensão do Estado (pós-)moderno. O tema aparentemente recorrente, merece reiteradamente ser discutido em face de as novas roupagens e à releitura que recebe dia a dia, a evolução da sociedade e a atividade inventiva de quem pretende utilizar-se de meios, nem sempre legítimos e por vezes antidemocráticos de impor-se perante a sociedade.

Os exemplos dessa atividade fazem parte de nosso cotidiano e não devem ser mitigados ou mesmo considerados normais, devem sim ser encarados com a importância que merecem e servir de alerta para que possamos repensar a principal crise porque passa o Estado contemporâneo: a crise de identidade.

A problemática do presente trabalho resume-se, a nem sempre simples, tarefa de (re)discutir as indagações: Qual o limite de atuação dos poderes sem que o princípio da harmonia e independência dos poderes seja ferido? A revisão que se impõem ao Estado Democrático de Direito contemporâneo abrange redefinição aos papéis dos poderes?

Um caso recente chama atenção, diz respeito às constantes reclamações do Presidente da República da atividade que chama de “ingerências” de um poder no outro, notícia veiculada na Folha de São Paulo traduz o problema: “Seria tãoPage 72bom se o Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas dele. Iríamos criar a harmonia que está prevista na Constituição para que democracia seja garantida...”2

Como lembra Mauro Capeletti, citando Koopmans, o welfare state foi resultado da atividade legislativa3, e, com o avanço das necessidades da sociedade na contramão da capacidade estatal de atendimento imediato, surge o papel do Juiz, que, em sua atividade, transforma-se em legislador, seja para suprir ausência dos demais poderes, seja pela atitude vaidosa de alguns julgadores de querer medir forças com o Executivo ou mesmo com o Legislativo.

A crise está instaurada! O Judiciário legisla através de uma minoria não eleita democraticamente e passa a ditar os caminhos e rumos do Estado; o Legislativo passa a preocupar-se com tarefas bem diversas daquelas destinadas ao seu poder de regulamentação da ordem social e, quando a faz, esquece de seu primordial princípio, o interesse da sociedade, por último, mas não menos importante, o Executivo, que encontrou na delegação do Poder Legislativo – que atribui o direito do administrador de legislar de forma extraordinária –, uma forma indiscriminada de “criar” leis, ferindo mais uma vez princípios democráticos basilares.

Como discorre Streck, os poderes Legislativo e Executivo não tomaram consciência do conteúdo compromissário e dirigente (que é boa ou má dependendo dos interesses colocados em jogo) da Constituição e o Judiciário mostra-se comprometido com o paradigma liberal individualista4 o que demonstra cabalmente a inviabilidade de o sistema presente permanecer inalterado.

O Poder Legislativo passa cada dia a preocupar-se mais com atividades que, ao menos teoricamente, não seriam, ou deveriam ser de sua ocupação, relegando a segundo plano sua função de organizar através da atividade legislativa as relações públicas e privadas e, por conseqüência, os rumos do Estado, os sujeitos eleitos para representar o povo já não correspondem à expectativa mínima, muitas vezes legislando na contramão da necessidade popular, mas em consonância com interesses econômicos de uma minoria, isso sem contar na crise moral que vivem os sujeitos eleitos democraticamente.

Por sua vez, o Poder Executivo tem usado de forma nada convencional a atividade legiferante, principalmente através do instituto das medidas provisórias, e a ocorrência reincidente marginaliza os requisitos mínimos para sua edição: relevância e urgência. Além disso, o administrador em algumas situações pretere o interesse geral da sociedade em favor de poucos interesses pessoais e deixa de realizar direitos mínimos da população agravando conseqüências de aspectos decorrentes da globalização e exclusão social. E o que é pior, quando o PoderPage 73Executivo se vê na berlinda da análise de seus atos pelos demais poderes, reclama de ingerência.

Por conseguinte, o Poder Judiciário tem constantemente adentrado na matéria administrativa, gerindo, muitas vezes, o orçamento, realizando medidas que seriam obrigação dos demais poderes. Estamos aqui diante do outro lado da moeda, mas o que fazer quando os demais Poderes falharam? Não seria, como lembra Garapon, o Juiz o último guardião das promessas estatais5? Ocorre que a justiça não pode se colocar no lugar da política, do contrário arrisca-se a abrir caminho para uma tirania das minorias, em resumo, o mau uso do direito é tão ameaçador para a democracia como seu pouco uso6.

No contexto acima narrado, em primeira análise, podemos dizer que todos têm sua mea culpa, nenhum dos Poderes está agindo dentro de seus limites, os excessos são facilmente vislumbrados, e acabam por desencadear um ambiente de tensão, que se não for mediado poderá colocar em xeque o próprio sistema democrático bem como o sistema de check and balances, um dos fundamentos de existência do sistema de repartição e equilíbrio na atuação dos poderes.

Esse desvirtuamento de entendimento sobre os limites de atuação de cada Poder sem que venha ferir a “harmonia” dos poderes, ditada pela Carta Política de 1988, é deveras importante para poder dar segurança mínima nas relações em todos os níveis, bem como para não deixar o povo sujeito a atitudes que coloquem em prova a própria existência do Estado Democrático de Direito, por abusos, vaidades ou decisionismos entre Poderes.

Lembra Canotilho que hoje a tendência é considerar a teoria da separação dos poderes como consagrada por Montesquieu um mito, visto que consistiria num modelo teórico composto por poderes rigorosamente separados, com funções próprias e sem qualquer interferência de um nos outros. Alguns doutrinadores, como Eisenmann, argumentam que a teoria nunca existiu, pois mesmo em sua concepção original essa separação não era absoluta, com o Executivo reconhecendo como legítimo o direito de interferir no Legislativo, com o poder de veto do rei. O Legislativo, por sua vez, possuía direito de vigilância nas leis que votara, interfere no judicial quando julgava os nobres pela Câmara dos Pares. Em última análise, não havia uma “separação” de poderes, mas, sim, uma combinação de poderes.7

Surge a indagação sobre se estamos ou não diante de uma crise de poderes, e se toda essa situação traz perda de identidade de funções, caminhando um pouco mais longe, questionaríamos se seria o momento oportuno para que os poderes fizessem uma releitura de seus papéis.

A impressão que temos é que essa “revisão” se impõe de forma urgente e que vem sendo feita completamente às avessas do almejado pela sociedade, qualPage 74seja, atingindo papéis que não deveriam ser seus, acarretando o agravamento de um estado doentio crônico que parece não ter fim, transitando pelos obscuros caminhos da competição entre poderes, num fenômeno que, diriam os pessimistas, impossível de retrocesso, mas para os otimistas apenas mais um momento propício para encontrar soluções.

Nessa perspectiva, tentaremos deixar mais uma vez, como tantos que já discorreram da matéria, o assunto vivo e constante no debate, analisando a urgência da revisão do paradigma da separação dos poderes, tomando como exemplo prático as situações dantes narradas, sempre tendo por base a própria sociedade, na senda evolutiva do dia-a-dia, na produção de suas necessidades e dentro de seu poder de invenção e adaptação para que encontre a melhor resposta, ou a resposta que melhor satisfaça, não apenas as vontades de um ou outro poder, mas sim do povo como detentor e destinatário direto da soberania e quem deveria ser não apenas mero destinatário, mas principal partícipe das decisões decorrentes da atividade legislativa praticada por todos os poderes, seja de forma legítima ou não.

1 A crise entre poderes: verdade ou mentira

Muito se diverge sobre a existência ou não de um prenunciado conflito entre os poderes, trabalhamos, no Estado Moderno, com uma nítida crise funcional. Descrevê-la vai muito além das perspectivas da perda da exclusividade dos órgãos que desempenham funções estratégicas, e o significado da afirmação tem cabimento uma vez que os reflexos diretos dessa perda de exclusividade atingem diretamente os fundamentos do Estado Moderno. Streck e Bolzan conceituam a crise funcional como sendo a “perda de exclusividade sentida pelos órgãos incumbidos do desempenho de funções estatais, aos quais são atribuídas tarefas que lhes são inerentes”8.

Não há como manter longe do debate as considerações sobre a harmonia dos poderes constituídos, ou, mesmo, sua remota independência9. A fragilização do Estado Contemporâneo pelos fenômenos e agentes decorrentes da globalização atuam tanto no viés interno como no viés externo da organização, do alcance e dos limites das funções estatais, trazendo uma necessidade intrínseca e extrínseca de transformação dos conceitos e paradigmas dessas atividades.

No seu viés interno, as funções do Estado atuam diretamente sobre a questão da harmonização e independência dos poderes, já repetitivamente conhecidas: Executivo, Legislativo e Judiciário. Dessa perspectiva, não se pode esquecer que a teoria da separação dos poderes teve seu projeto embrionário desenvolvido por Locke e, nos trilhos seguintes, aprimorada por Montesquieu, que decretou a “tripartição” dos poderes na forma estrutural mais conhecida e aceita.

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A teoria nasce na tentativa de assegurar a liberdade dos indivíduos, uma vez que Montesquieu não podia conceber todas as funções do Estado num mesmo “corpo” sem que com isso não imperasse a tirania dos atos; assim, a distribuição de...

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