Questões sobre a categoria ontológica do trabalho

AutorMônica Mota Tassigny
Páginas147-158

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O século* XXI se instaura como a era do desemprego, como o fim da sociedade do trabalho, como os tempos da reestruturação produtiva e da globalização das economias.

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No plano socioeconômico o capital financeiro movimenta-se, em escala planetária, rompendo fronteiras de forma excludente sem precedentes. Move-se com uma velocidade surpreendente de um país para outro, dilapidando economias e fundos públicos, gerando fome, violência e barbárie social e, antes de tudo, vem também universalizando a miséria.

Esse processo desencadeia novas formas de organização da produção, originando, nesse contexto, a produção “flexível”, incrementando nova base técnico-científica à produção; fatos que têm permitido que as economias aumentem de produtividade, ao mesmo tempo em que diminuem, consideravelmente, os postos de trabalho.

Tais transformações, que não têm ocorrido uniformemente no mundo, inauguram uma crise de paradigmas nas Ciências Humanas e Sociais tendo como foco o trabalho. Surge ampla literatura de tradição liberal, agora chamada pós-moderna, teorizando sobre o fim da sociedade do trabalho.

Nesse quadro alguns teóricos afirmam que os avanços científico-tecnológicos da produção engendram uma “nova” sociedade, onde o trabalho perde sua centralidade como criador de valor. Perdendo o trabalho sua função de elemento organizador da sociabilidade, desaparece, então, com ele, sua “viga mestra”, o trabalhador e as contradições entre capital e trabalho.

Nesse quesito urge indagar sobre as novas relações que vêm se estabelecendo entre o homem e o trabalho, revelando o caráter falseador dos argumentos sobre o fim do trabalho. Nesse particular reforçamos a validade da perspectiva histórica e dialética como base teórica capaz de desvelar de forma crítica os fundamentos de tais teorizações.

Para Marx (1980, p.218-9) o trabalho é a categoria fundante do ser social, portanto, condição natural e eterna da produção da vida social e independente de qualquer forma de sociedade, por isso categoria ontológica 1 , isto é, central na vida dos homens.

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Na mesma direção, Lukács (1981, p.26), concordando com Marx, esclarece que, no capitalismo, o trabalho se manifesta, em sua particularidade histórica, sob a forma de força de trabalho subordinada aos interesses do capital, contudo, não perde sua centralidade ontológica como fonte primária de realização humana e como modelo privilegiado de toda práxis social.

O debate acerca do lugar social do trabalho

A atual situação de desemprego, aliada às mudanças no mundo do trabalho, tem motivado previsões variadas sobre o “fim do trabalho e do proletariado” e sobre o próprio fim do capitalismo 2 .

Um dos aspectos essenciais dessas transformações diz respeito ao que se costuma chamar de “reestruturação produtiva”, que tem acarretado, em termos práticos, a destruição, em larga escala, da força de trabalho. Como nunca antes na história, se articularam de forma tão intensa o desenvolvimento das forças produtivas e altos níveis desemprego.

Nesse contexto, acrescenta François Chenais (1997), a “mundialização do capital” se exprime com grau de liberdade quase total para expandir-se, deixando de se submeter aos antigos entraves e limitações à produção. Entretanto, diz Chesnais, ele não é, de forma alguma, um capitalismo “renovado”; simplesmente encontrou bases mais adequadas para desenvolver-se.

A partir desse quadro, legitimam-se algumas idéias sobre o fim do trabalho. Algumas delas apóiam-se na tese da diminuição da classe operária industrial tradicional, bem como no fato atual de expressiva expansão do setor de serviços.

Sem esgotar a amplitude que caracteriza o debate sobre a crise do trabalho, chamamos a atenção para uma usual redução do conceito de trabalho à noção de praxis utilitária 3 . Isto é, homogeneízam, num só conceito, a noção ontológica de trabalho, como categorial central da sociabilidade e o significado de trabalho particular e histórico, e sua atual e constatável retração na vida cotidiana.

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Segundo Lessa (1997, p.162), o peso do trabalho nas tarefas cotidianas, ao longo da história, varia de sociedade para sociedade e, nessas, de classe para classe:

[...] Apenas a análise concreta destas formas históricas pode dar conta desse fenômeno, não havendo nenhuma linearidade necessária (nem de negação nem de afirmação) entre a centralidade ontológica do trabalho e a diminuição da presença do trabalho enquanto dimensão da vida cotidiana [...].

Ainda nas discussões sobre o futuro do trabalho, a noção de sociedade do trabalho fundamenta-se na figura da empresa industrial, cujo paradigma são a fábrica e o trabalhador industrial, mão-de-obra considerada “livre” para vender sua força de trabalho em troca de um salário.

Partindo dessa base, Dahrendorf 4 , por exemplo, afirma a perda da centralidade do trabalho na sociedade. A prova disto, afirma esse autor, são o destino certo do desemprego e a diminuição crescente das horas de trabalho necessárias à produção.

Também pela mediação do desemprego e pela proliferação do setor dos serviços, Offe 5 questiona o trabalho como princípio organizador da sociabilidade. Para esse autor tais fenômenos ocorridos no mundo do trabalho rompem com a tradicional construção da identidade social dos trabalhadores a partir do trabalho.

Offe teoriza sobre o surgimento de uma nova relação da sociedade com o trabalho. A crescente utilização da informática, aliada às ferramentas da comunicação, aponta para nova configuração das relações produtivas, agora, qualitativamente diferente das anteriores e com implicações irreversíveis na relação dos homens com o trabalho.

Tanto a posição de Dahrendorf quanto a de Offe negam a validade da teoria do valor-trabalho de Marx, como base para se compreender a sociedade atual. Para ambos a contribuição de Marx estaria ultrapassada porque somente podia dar conta daquela sociedade industrial baseada no trabalho e no conflito capital/trabalho, característicos do século XIX.

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Já Drucker 6 vai ainda mais longe, alega que vivemos numa sociedade pós-industrial. O capital, a terra e a mão-de-obra não são mais fatores imprescindíveis à produção. O importante são o conhecimento, a tecnologia e a informação. A força diretiva da sociabilidade, então, seria o valor-conhecimento e não o valor-trabalho.

Na mesma direção, Gorz 7 decreta o fim do trabalho, do proletariado e dos antagonismos entre capital e trabalho. Nessa interpretação, a automatização da produção criou condições para que robôs substituam o tête-à-tête do trabalhador com a matéria- prima na produção.

A partir dessas constatações, justifica Gorz, o tempo de trabalho não pode mais ser a medida do valor econômico. Nesses termos, o trabalho vivo no sentido marxista do termo deixa de ser parâmetro da produção de valor, portanto, não mais ocuparia lugar central na sociabilidade...

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