Questões de gênero na obra Cem anos de solidão de García Márquez

AutorMichelle Domit Gugik
CargoSecretaria de Estado da Educação
Páginas12-27

Page 12

A obra* de Gabriel García Márquez é conhecida pelo recurso estilístico denominado realismo fantástico, que demonstrou ter grande apelo popular e cuja riqueza de símbolos foi plenamente identificada por leitores de origens diversas. Nela, desfilam dramas e tramas que consistem na personificação cotidiana dos menos favorecidos. Partindo-se dessas características, neste artigo, discutem-se elementos vitais presentes numa das obras mais aclamadas de Márquez: Cem anos de solidão , tecendose conexão entre a biografia do autor e as influências que ele recebeu, além de se abordar os papéis masculinos e femininos condensados no reflexo da família latino-americana, que é retratada pelo autor.

Tal como as manchas de Rorscharch, o livro de Márquez abarca um leque de configurações que despertam as mais amplas conjecturas. O sucesso das obras que se valem do realismo fantástico está na riqueza simbólica, que evoca variadas reações perceptivas dos leitores, os quais reconstroem mentalmente o argumento mediante sua própria compreensão do mundo.

Page 13

Cem anos de solidão apresenta, além do realismo fantástico, uma gama de valores e questões a serem debatidos, originados dos conflitos que constituem a relação entre o indivíduo e a sociedade, entre o espaço privado e o público e a construção dos gêneros masculino e feminino, por meio dessas relações.

A mitologia concede à obra caráter universal e paradoxalmente regionalista – devido ao manejo tempo-espaço da condição humana, em que o tempo funciona como máquina fotográfica, retratando a humanidade em diferentes épocas, sociedades e culturas, condensando-a em descontínuo relevo. Cem anos, portanto, não condizem com a contagem cronológica do tempo, o que leva a considerar que, antes de ser um romance fantasioso, ele mergulha na obscuridade emocional do ser humano, em sua natureza mais primitiva, independentemente de mudanças e avanços tecnológicos e sociais.

O autor

A ironia e a mitologia popular são características inconfundíveis dos livros de Márquez, e culminam em um estilo literário original, norteado pelo realismo fantástico 2 .

De acordo com o prefácio anônimo da 30ª edição de Cem anos de solidão ” (1984) - Gabo, como era chamado pelos amigos, nasceu em 6 de março de 1928, na aldeia de Arataca (a Macondo de seus livros), situada na Colômbia. Proveniente de família modesta e numerosa, entrou em contato desde cedo com lendas e fábulas transmitidas oralmente de geração para geração, o que influenciou profundamente sua criação literária.

O pai de Gabo levava uma vida pacata, como proprietário de uma pequena farmácia homeopática. O avô era veterano da Guerra dos Mil Dias, e encantava o pequeno neto com suas histórias. Costumava levá-lo a passear e, às vezes, quando sentia súbitas pontadas – que o obrigavam a parar no meio da rua – dizia ao garoto:

Ay, no sabes cuánto pesa un muerto! 3 . As informações prefaciais (1984) sugerem que a relação entre avô e neto alicerçou a compreensão fantástica do mundo, por parte do escritor. Conseqüentemente, o paradoxo entre a realidade da guerra e a idealização da morte como inexorável mistério constituiriam o eixo norteador primitivo de toda sua inspiração.

Page 14

A família de Gabo partiu de Arataca, por causa da crise na plantação bananeira. Ele iniciou os estudos na cidade de Barranquilla e freqüentou o Liceu Nacional de Zipaquirá. Estudou direito e jornalismo nas universidades de Bogotá e Cartagena. Posteriormente, trabalhou como correspondente para o jornal de Bogotá, El espectador , no qual ficou conhecido por reportagens e críticas sobre cinema.

Por meio de sua bibliografia, verifica-se como a cultura latino-americana é caracterizada por fortes emoções e conflitos provocados por valores sacros e profanos, exacerbando-se a cristalização dos papéis masculinos e femininos na família latina, marcas indeléveis na maioria das obras dos grandes autores latino-americanos.

A carreira literária de Márquez iniciou-se com o romance O enterro do diabo (1955), quando a aldeia de Macondo apareceu pela primeira vez 4 . Em 1961, publicou Ninguém escreve ao coronel . Em seguida, lançou uma coletânea de contos, intitulada Los funerales de Mamá Grande (1962). Publicado no mesmo ano, O veneno da madrugada ganhou o Prêmio Nacional de Literatura da Colômbia. Nessa obra, Gabo abordou pela primeira vez os temas repressão política e tirania nos meandros do poder.

Outras obras suas que se destacaram são: La novela in América Latina (1968) – a qual ele escreveu em colaboração com o peruano Mário Vargas Llosa; A incrível e triste história de Cândida Erêndida e sua avó desalmada , coletânea de contos; Olhos de cão azul (1972); O outono do patriarca (1975); Crônica de uma morte anunciada (1981); O amor nos tempos de cólera (1982), que lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura, por narrar os sentimentos profundos e primitivos que atormentam os indivíduos acorrentados a seus pesadelos pessoais; O general em seu labirinto (1989), romance sobre os últimos dias do libertador Simon Bolívar; e Del amor y otros demônios (1994).

Sua consagração veio, no entanto, com o romance Cem anos de solidão (1967), em que narra a história do povo de Macondo e seus fundadores: a família Buendía. De forma alegórica, a obra reconta a história da Colômbia e privilegia a crueza e a truculência dos relacionamentos afetivos na cultura latino-americana, de acordo com Georges Sion, o qual se encarregou da tradução da obra para o francês (1984); e James R. Frakes, crítico do The New York Times .

Page 15

Em Cem anos de solidão , são delineados os espaços limítrofes entre o homem e a mulher em sociedade, no tocante às esferas pública e privada, conseqüentemente, remetendo os indivíduos a frustrações e anseios de fugir à ordem social imposta. As personagens são espicaçadas por desejos proibidos e inconfessáveis. Um dos aspectos mais importantes do livro é o distanciamento prudente que o narrador faz em relação à realidade, a fim de mais bem esmiuçar as atitudes humanas no campo das impressões e dos sentimentos.

Cem anos de solidão

Macondo era uma pequena vila isolada do resto do mundo. A maioria dos moradores desconhecia os avanços e acontecimentos de outras regiões, bitolando-se nos modos e meios de produção aprendidos de geração para geração e rejeitando situações que escapavam da realidade conhecida. As atividades cotidianas transcorriam calma e satisfatoriamente, pois eles compartilhavam do mesmo nível de saber. A descrição não foge da realidade atual de muitas comunidades latino-americanas, mas representa, em suas entrelinhas, a trajetória da civilização analogamente à bíblia, berço mítico do cristianismo.

O desenvolvimento de Macondo acompanhou a ambição de seu fundador, José Arcádio Buendía. O destino da família Buendía foi traçado por um segredo previsto com cem anos de antecedência pelo cigano e alquimista Melquíades. A primeira geração carregou a maldição da consangüinidade: José Arcádio e Úrsula, sua esposa, eram primos. As famílias de origem do casal foram contra a união. A mãe de Úrsula procurou persuadi-la a não consumar o casamento, alegando que os netos teriam um futuro sinistro, pois acreditava, devido a comprovado precedente nas duas famílias, que os futuros filhos de Úrsula nasceriam com rabos de porco ou iguanas. Para evitar o destino, Úrsula passou a usar um cinto de castidade que vestia à noite, com medo de que o marido se aproveitasse dela sexualmente, durante o sono.

Crendices populares permeiam a conduta das personagens. Até hoje, é possível encontrar, nas mais variadas comunidades, cujo meio de subsistência é agrícola ou pesqueiro e cuja cultura cristalizou-se no fazer cotidiano, crenças que se sobrepõem à realidade e conduzem a vida da comunidade, como ocorre com as histórias sobre bruxas contadas pelos pescadores da Ilha de Santa Catarina.

Page 16

O autor, contudo, permite a malícia de refletir sobre o fundo de verdade que todo mito aparentemente tem, verdades essas que ganham caráter atemporal e são produzidas por ações individuais e coletivas, orientadas por profecias e mitos. No enredo, percebe-se a importância atribuída ao destino e às ações dos antepassados, que repercutem na vida de seus sucessores, ou seja, acontecimentos que guiam o grupo familiar para o erro e a desgraça e, conseqüentemente, favorecem a confirmação do mito e das profecias.

Passou-se um ano sem que Úrsula e José tivessem relações sexuais, e a fofoca já agitava o povoado. As pessoas especulavam que Úrsula continuava virgem por causa da impotência do marido. A mulher permanecia em casa, afastada dos olhares de todos, enquanto o marido participava da vida social, embora fosse ridicularizado pelas costas. Aqui, evidenciam-se claramente questões históricas dos gêneros 5 : o papel do homem costumava ser o de procriador e provedor, ao...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT