A questão do método em Pontes de Miranda: uma contribuição ao permanente desafio hermenêutico

AutorAntônio Maria Iserhard
Páginas161-173

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Para investigar o fenômeno jurídico, Pontes de Miranda1 parte do princípio da unidade das ciências, na medida em que considera fundamental para a análise das relações sociais, a interdisciplinaridade, em cuja trama deve ser descoberto o direito. Na sua concepção, não existe ciência independente. A dependência disciplinar é necessária para a obtenção do conhecimento mais próximo possível da verdade, que por sua natureza é relativa, pois o absoluto não passa de mera ficção, de artifício, de abstração, incompadecente com a correspondência fática.

Por isso, o mais que se consegue é atingir uma explicação mais exata das coisas, sem nunca conquistar a rigorosa certeza, dado a própria relatividade do conhecimento. Contudo, nada impede de se buscar caminhos mais seguros, estradas menos íngrimes, trilhas não tão escarpadas, para percorrer o viés epistemológico na busca do conhecimento mais adequado, compatível com os fatos, com a realidade e com a vida.

É neste sentido que Pontes propõe para o estudo do direito o método de indução científica, único meio para o estudo objetivo do fenômeno jurídico, pois somente pela via indutiva se pode extrair dos fatos, das relações sociais, as regras jurídicas que regulam a coexistência social.

O método baconiano, por partir dos fatos e a eles volver, constitui critério seguro, objetivo, para apreender o fenômeno jurídico em sua totalidade, sem mutilações, tão afeitas ao apriorismo, que tudo pretende abarcar, a partir de raciocínios dedutivistas, de moldes do escolasticismo, não se dando conta da complexidade do social, que é muito rico para se deixar aprisionar em axiomas estéreis e hipostasiantes da realidade fática.

O autor preconiza o princípio da unidade metódica, defendendo método único, exclusivo, na pesquisa do conhecimento. Assim, condicionou a investigação do fenômeno jurídico à metodologia também utilizada nas chamadas ciências naturais. Aliás, coerente com o meio de indagação do direito, considerado como ciência social, tornou possível tal vinculação, dado a outro princípio também proclamado, consistente na unidade das ciências, o que evita contradições entre as mesmas, devido à aglutinação experimentada, para a compreensão e explicação do jurídico. Não existem diferenças metódicas entre as ciências naturais, sociais ou jurídicas.

Destarte, utiliza a física, a biologia, a sociologia e demais disciplinas complementares para pesquisar a naturalidade do fenômeno jurídico nas próprias relações sociais, para delas revelá-lo através das regras jurídicas.

Entende que somente existe ciência da natureza, do real. A ciência é uma só. Não existe ciência do ideal. “Para ser ciência, o direito tem que ser ciência natural, porque todas o são: não há ciências do ideal, mas do real, da natureza, das relações do mundo.”2

Ao examinar objetivamente o jurídico, salienta a importância da epistemologia jurídica, que, por sua vez, mostra os processos correspondentes aosPage 163 três métodos lógicos e as três etapas da indagação e da elaboração do direito, não deixando de tecer acuradas críticas sobre os mesmos.

Segundo o autor, a etapa empírica, com o correlato método intuitivo e a fase racionalista, de correspondente método dedutivo, prevalecente este último até o primeiro quartel do século passado, cederam lugar a nova fase epistemológica surgida, que é da investigação científica, dominada pelo método indutivo-científico.

Com a metodologia indutivo-científica, pretende dotar a investigação jurídica de maior objetividade, sempre cônscio da relatividade do conhecimento, ponto de partida na tarefa hermenêutica empreendida para descobrir as regras jurídicas nas relações sociais, na qual apóia sua convicção de cientista do direito, que não se confunde com a do mero jurista.

Historicamente, a ordem em que devemos colocar os três processos é a seguinte: empiria, racionalismo, ciência. O primeiro identifica a formação e a imposição do direito: abandona-o aos fatos, que são, para as regras futuramente observáveis, os elementos plurais, que a compõem, como as árvores compõem a floresta, as estrelas o firmamento, as tintas o quadro, os grãos o celeiro. O segundo divide o fenômeno, cinde a própria formação e apaga, depois, um dos termos, oreal. Abroquela-se no seu recanto subjetivista: é o solipsismo da metafísica do direito, que, confiante na razão, dela espera tirar toda matéria necessária à disciplina das lações humanas. A ciência é crítica; considera a lei escrita, como o sentimento e a consciência jurídica, traduções do direito( processos de adaptação ou de correção de defeitos de adaptação à vida social); reconhece que o homem procura a regra adequada e eficaz, ora intuitiva , ora dedutiva, ora indutivamente, e que assim atravessou as três fases principais de sistema exclusiva, a aperfeiçoar, continuamente, o ‘conhecimento’, que sentimento, razão e ciência cristalizam.3

Observa-se na sequência metodológica traçada sobre o conhecimento do direito o absolutismo fundante do jurídico, em face da imposição do direito na sua própria elaboração, atribuída ao intuicionismo-empirista, que o abandona aos fatos.

Tal despotismo jurídico, apanágio do período larvário do direito, experimenta gradativo decréscimo em seu quantum, na travessia do tempo, diminuindo ainda mais ao cruzar a barreira do racionalismo, que tinha na razão o receptáculo de onde se supria a necessária coexistência humana.

É no período da investigação científica do direito, momento epistemológico recém-iniciado, que se dará a tradução crítica e reflexiva do fenômeno jurídico. A interdependência das ciências e a unidade metódica, por meio do determinismo probabilístico, ensejará a descoberta segura e eficaz das regras jurídicas contidas nos fatos, porém suscetíveis de aperfeiçoamento, pois o que há de constante no direito é somente a adaptação, bem demonstrando ser elePage 164 estável, mas não estático. Esta relativa certeza só pode ser dada pela via indutiva, único caminho adequado, capaz de comprometer o direito com a vida.

Na nova ordem jurídica surgida, incumbe à ciência, por meio do método indutivo, indicar pela observação, indução e experimentação dos fatos o imperativo das normas jurídicas. Do direito imposto, passamos para o direito espontâneo; ao invés do despotismo das regras jurídicas, marchamos no sentido da democratização dos processos de produção das regras jurídicas. Procura-se de forma constante libertar o direito das amarras e dos grilhões despóticos, diminuindo tanto quanto possível o “quantum” de despotismo de que se ressente o direito, para torná-lo rente aos fatos.

Para pesquisar o direito concreto, vivo, efetivo, que se encontra na realidade social, utiliza-se da indutividade baconiana, já presente em Aristóteles, partindo do particular para o geral, tendo consciência da finitude da experiência e da complexidade de determinadas relações, o que, muitas vezes não permite a observação direta e imediata da realidade, caso em que opera o determinismo estatístico ou probabilístico, pois não é preciso conhecer todos os fatos da vida social.

E este método é a indução, que trabalha com os fatos; e, científica, como a conceituou BACON, não precisa conhecer ‘todos’ os fatos para que, segundo ARISTÓTELES, vá do particular ao geral. Se procedermos dedutivamente, a cada passo encontraremos algo que nos desmente o raciocínio, e , então, a complexidade será, para nós, de invencível insondabilidade. Seria exigir do homem a divina sabedoria de encontrar o princípio universal ‘para os fatos’, quando não é de crer que exista tal princípio universal ‘para os fatos’, quando não é de crer que exista tal princípio uno e imutável. Dele é que tiraríamos os outros, ou melhor, dentro dele é que realizaríamos as trocas de conceitos.4

No fundo, a preocupação metodológica de Pontes de Miranda revela em toda sua plenitude o problema da própria epistemologia jurídica, que é problema humano e não da natureza, denunciando a insuficiência do estágio de cultura alcançado, para solucionar a aporia sempre colocada de como traduzir os dados do mundo, a partir de conceitos que informem e comuniquem com precisão o objeto conceituado. Cônscio da impossibilidade de conquistar a verdade absoluta, adota a postura cômoda do relativismo, do rigor, da certeza e da precisão relativa.

Critica o detutivismo-racionalista por se abroquelar na razão abstrata, em máximas estéreis e princípios invariáveis, nos quais pretende assoalhar as respostas, que supostamente as tem, para todos os problemas formulados pela inextricável tramas das relações sociais. Não acredita que fórmulas aprioristas, hipostasiantes da realidade social, possam enfeixar toda a gama de complexidade...

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