Direito e reciprocidade na ausência de um único mundo vivido: o multiculturalismo na Amazônia Ocidental

AutorRafael Lazzarotto Simioni
Páginas53-65

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Introdução

Da janela de um hotel em Xapuri12, no interior do Estado brasileiro do Acre, pode-se ver a casa em que viveu e morreu Chico Mendes. É preciso olhar com muito cuidado. Há gigantescas castanheiras e samaúmas que dificultam a visão do turista. Mas “turista” não é a melhor palavra para designar a sensação que se tem ao se olhar a cidade de Xapuri. Em qualquer lugar do mundo, pode-se ser turista: um lugar do qual se pode ir embora para voltar às rotinas. De Xapuri não se pode ir embora, nem voltar às rotinas: trata-se de uma cidade construída dentro da floresta amazônica, onde os prédios é que parecem espremidos pela floresta e não o contrário. E não se sai ileso de uma floresta como aquela. Há dificuldades demais para se enfrentar sozinho. A solidariedade então se torna a condição de sobrevivência. E da solidariedade não se pode simplesmente ir embora, nem retornar às rotinas.

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A floresta une os povos. Exige laços de solidariedade e de ajuda ao próximo. A sua grandeza é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade e a ameaça à subsistência dos seus habitantes. Uma cultura baseada na reciprocidade então se consolida entre os diversos povos da floresta amazônica ocidental. Povos de etnias diferentes, com culturas diferentes, línguas diferentes, crenças e objetivos diferentes, todos encontram na floresta a sua identidade, a sua unidade. E assim estabelecem as suas próprias regras de reciprocidade.

Diferentemente do Acre, no vizinho Estado de Rondônia encontra-se outro cenário. Em Rondônia são as fazendas que parecem espremer as florestas. Uma aversão generalizada ao mato se encontra também nas cidades: não há árvores, não há sombras, apesar do Sol escaldante do verão que dura o ano todo. As poucas árvores que existem nas cidades ainda são podadas de modo a mantê-las exageradamente pequenas, imperceptíveis entre o cimento, o asfalto e o chão batido. Rondônia foi uma terra de passagem, um lugar provisório para os emigrantes, que vão para lá com a expectativa de ganhar algum dinheiro e ir embora. A provisoriedade está em todo o lugar. A maioria das casas e estabelecimentos parecem construções provisórias, as ruas, os poucos espaços para lazer urbano e até mesmo os relacionamentos sociais parecem ser provisórios. A política é provisória.

Pensar a questão da cultura nesse cenário se torna algo com uma dificuldade sem precedentes. Porque uma coisa é pesquisar a questão do multiculturalismo quando se supõe, como faz Habermas, pelo menos a existência de um compartilhamento intersubjetivo dos mesmos valores, crenças, práticas, enfim, quando se supõe que as pessoas que vivem na Amazônia Ocidental compartilham os mesmos ideais de vida boa, um mesmo “mundo vivido” (Lebenswelt). Outra coisa é enfrentar a questão do multiculturalismo quando se está diante de uma forma de convívio social entre povos tão diferentes culturalmente, que não se pode supor a existência de um único “mundo vivido” compartilhado intersubjetivamente.

Essa questão se torna interessante para o direito, especialmente porque ao não se poder supor a existência de valores, práticas e normas em geral intersubjetivamente compartilhadas, também não se pode mais supor nenhuma garantia de legitimidade do direito sobre as práticas sociais da Amazônia Ocidental.

No que segue, esta pesquisa procura estabelecer algumas relações entre essa forma de multiculturalismo da Amazônia Ocidental e os modos através dos quais o direito pode constituir vínculos com essas diferentes formas de sociedade. A questão fundamental que nós propomos nesta investigação, portanto está no problema da imposição jurídica de um modelo ocidental de normatividade sobre práticas sociais já desenhadas histórica e culturalmente.

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1 Povos da floresta, povos que não são da floresta

Sob o nome de “povos da floresta”, falamos de índios, caboclos e populações ribeirinhas. Seringueiros, artesãos, caçadores e coletadores3. Claro que há prefeito, vereadores e funcionários públicos. O Estado também se faz presente na floresta4. Mas esses são os representantes dos povos que não são da floresta. Colocamos no lado “povos que não são da floresta” os investimentos nacionais e internacionais e todas as demais formas de organização e de vivências que não correspondem às dos povos da floresta.

Entre os povos da floresta e os que não são da floresta surgem mediações importantes, como o mito Chico Mendes. Membro do símbolo “povos da floresta”, Chico Mendes constituiu-se em um mito internacional – como todos os demais mitos da floresta. Precisamente por ser seringueiro, a sua subsistência dependia diretamente da floresta. E como todo membro dos povos da floresta, a sua subsistência dependia também da solidariedade para com todos os demais povos que igualmente dependiam da floresta.

Através do mito Chico Mendes, a força política dessa identidade de múltiplas culturas se fez escutar para além das fronteiras da Amazônia. No mesmo período em que se associava a floresta amazônica ao pulmão do mundo, no contexto de previsões catastróficas relacionadas ao “efeito estufa” – nem se falava ainda em aquecimento global –, a comunicação dos povos da floresta foi difundida internacionalmente através de Chico Mendes. Precisamente por isso ele foi assassinado. Ele chamava a atenção para acontecimentos diante dos quais o Estado não poderia mais ficar inerte. A presença do Estado, com exceção à presença militar para a defesa do território, era mínima. Sequer havia gente suficiente para justificar investimentos estatais.

Justiça social na selva? Obras caríssimas para atender populações quantitativamente insignificantes foram inclusive motivo de oposição política – a transamazônica e a ferrovia Madeira-Mamoré são bons exemplos disso. A floresta sempre foi demasiadamente agressiva aos povos que não são da floresta para justificar uma colonização com finalidades sustentáveis. Mas diferentemente da floresta, a terra agricultável não fornece nenhuma garantia de solidariedade entre os povos.

O cenário atual é exageradamente complexo: ainda se encontram poucos representantes dos povos da floresta. Há “soldados da borracha” vivos, cheios de histórias e lendas para contar sobre as vivências nas colocações dos seringais. Junto com esses povos, contudo, a cultura do mundo ocidental parece ofuscar a riqueza dos conhecimentos tradicionais dos povos da floresta. Ongs ensinam os índios e as populações ribeirinhas a ganhar dinheiro com seus conhecimentos tradicionais e a mídia local divulga isso como conquistas dignas de registro.

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Mas a questão permanece: que modelo de direito é o mais adequado a essa multiplicidade de culturas de desenvolvimento? E pode-se pensar que se trata apenas de um problema de ilusão teórica a respeito de uma realidade sobre a qual se pode fazer um simples juízo de conformidade? A questão realmente é difícil. Especialmente porque a ocidentalização da cultura amazônica é irreversível. Um lugar impressionantemente rústico e, ao mesmo tempo, dotado de altas tecnologias. Um “vazio” demográfico repleto de diversidade cultural5. Um lugar cheio de médicos e remédios de São Paulo e, ao mesmo tempo, cheio de curandeiros e receitas naturais sob os olhos atentos das indústrias farmacêutica e cosmética internacional. A beleza natural estonteante contrasta com a falta de planejamento das cidades, que parecem ter surgido de explosões demográficas.

2 O poliverso amazônico e a autoefetuação de sua unidade

Há uma unidade nessa multiplicidade? A pergunta pela unidade é importante porque é a partir dela que se torna possível pensar no modo através do qual essa unidade se reproduz como unidade de uma diferença. Adotamos aqui a perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann6, que pergunta pela unidade como forma de uma diferença7.

Nessa perspectiva, pode-se observar que a distinção entre povos da floresta e povos que não são da floresta só é possível quando a comunicação faz referência a um valor simbólico estável e constitutivo dessa distinção mesma. Sinalizamos esse valor simbólico e o indicamos na floresta. Quer dizer, somente com base no sentido simbólico da floresta é que a distinção entre povos da floresta e povos que não são da floresta faz sentido na comunicação. Essa distinção pressupõe, portanto, o símbolo “floresta” como unidade da distinção.

A floresta constitui uma referência simbólica presente em todas as formas de comunicação da Amazônia Ocidental. Ela fica como um suposto implícito – um pano de fundo – do modo de organização social da região. A floresta é, ao mesmo tempo, o símbolo da solidariedade e dos motivos da reciprocidade entre os povos da floresta, como também é o símbolo dos desafios e do trabalho árduo enfrentados pela colonização agropecuária dos povos que não são da floresta. Com base na floresta como referência comunicativa, um biólogo pode ver um ecossistema tropical, um economista pode ver oportunidades de lucro, um político pode ver oportunidades para fazer oposição ao governo, um religioso pode ver...

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