Reflexões sobre as representações sociais da AIDS e do câncer e as interações entre pacientes, famílias e profissionais de saúde

AutorÂngela Hering de Queiroz - Elisângela Böing - Maria Aparecida Crepaldi - Naiane Carvalho Wendt
Páginas106-119

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A queda* da mortalidade, a partir do século XVIII, nos países industrializados, e o aumento da morbidade ampliaram a duração média de vida da população, caracterizando o que Singer, Campos e Oliveira (1978) chamaram de revolução vital. Tal revolução ocorreu, de acordo com esses autores, em virtude dos avanços tecnológicos, do controle de enfermidades e epidemias, aumento das medidas sanitárias e avanço da medicina, dentre outros.

Tal quadro marca a incidência e expansão das doenças degenerativas e crônicas, bem como das doenças mentais, do alcoolismo e uso de narcóticos. A doença crônica é geralmente de longo curso e baixa expectativa de cura, sem necessariamente limitar o enfermo. O convívio diário com os sintomas e o lento progresso deles dificultam o diagnóstico, atenuando as fronteiras entre saúde e doença, uma vez que, nos primeiros estágios, a pessoa pode sentir-se saudável, ainda que considerada doente.

Segundo McDaniel, Hepworth e Doherty (1994), em virtude de os doentes crônicos não estarem preparados para mudanças físicas, períodos alternados de estabilidade, crises e incerteza do futuro, a doença crônica propicia mudanças das representações sociais do paciente e da família e largo período de adaptação às constantes perdas acarretadas.

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A natureza longa e reincidente dos tratamentos para os portadores de doenças crônicas resulta em acompanhamento pela equipe de saúde, que pressupõe interação entre ela, os pacientes e família, sendo que as representações sociais da doença permeiam essas relações, influenciando-as e sendo influenciadas por elas.

Segundo Jodelet (1984; 1989), as representações sociais são teorias que possibilitam compreender os fenômenos da vida cotidiana, mediante um conjunto de significações e sistemas de referência, que permitem interpretar e dar sentido ao desconhecido, regendo as relações humanas com o mundo e com os outros e organizando comunicações e condutas. Madeira (1998) vai ao encontro dessa prerrogativa, considerando que as representações sociais organizam-se a partir das informações advindas continuamente da prática e das relações pessoais de cada sujeito.

As representações sociais são categorias que servem para classificar as situações, os objetos, os indivíduos com quem as pessoas se relacionam. São teorias que permitem preceituar os fenômenos da vida cotidiana, imagens que traduzem um conjunto de significações, sistemas de referência que permitem interpretar o que chega, maneiras de dar sentido ao desconhecido. Trata-se de atividade mental de indivíduos e grupos, destinada a fixar suas pertenças sociais, para relacionaremse aos fatos, objetos e situações que lhes dizem respeito. É conhecimento prático, de senso comum, socialmente elaborado e partilhado (JODELET, 1984).

Segundo Moré, Crepaldi, Queiroz, Wendt e Cardoso (2004), a equipe de saúde que assiste os pacientes portadores de doenças crônicas rotineiramente estabelece uma relação de troca, ora dentro da própria equipe ora com pacientes e família. Desse modo, um corpo de conhecimentos organizado provém dessas relações, produzindo o modo de pensar e agir desses indivíduos, nos contextos institucionais nos quais estão inseridos.

Doenças como a Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (AIDS) e o câncer, por serem de longa duração e demandarem reincidentes internações, acarretam em significativo envolvimento do paciente com a equipe de saúde, exigindo investimentos recíprocos deles. Compreender as representações sociais dos profissionais de saúde a respeito dessas doenças possibilita encontrar explicações para algumas práticas na área da saúde, desde a mais solidária à mais preconceituosa (AVI, 2000).

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Assim, a representação social que os profissionais das equipes de saúde têm a respeito das doenças crônicas, neste caso, a AIDS e o câncer, permeará as relações estabelecidas, promovendo maior ou menor vinculação entre os envolvidos, bem como adesão ao tratamento. Nesse sentido, este artigo visa a incitar reflexões sobre as representações sociais do câncer e da AIDS e como elas influenciam as condutas das pessoas em geral, destacando principalmente as condutas e representações da equipe de saúde.

A AIDS é vista hoje como doença crônica, uma vez que uma gama cada vez maior de medicamentos para tratá-la surge a cada dia, possibilitando maior controle da doença e aumento da expectativa de vida do portador (NICOLETTI, 1996). Os primeiros casos da doença foram registrados na década de 1970, sendo que, em 1983, isolou-se o vírus causador dessa síndrome. O Retro-vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) pode ficar por longo período encubado no organismo de forma assintomática, e, ao se manifestar, ataca os linfócitos, que são células de defesa do organismo, e isso possibilita a instalação de doenças oportunistas (LACAZ, 1986).

No Brasil, como em grande parte do mundo, a AIDS surgiu primeiramente como fenômeno da mídia, tornando-se questão pública impossível de ignorar, e somente depois se tornou evidência médica, exigindo dos profissionais de saúde posturas que levassem em conta aspectos biológicos e sociais (PARKER, 1994). O câncer também se configura como doença crônica bastante complexa, pois o mesmo tipo de câncer pode evoluir de diferentes formas em cada organismo (PAULO, 2004). Segundo Lima (2003), as causas do câncer ainda são desconhecidas, e existem várias teorias, ainda não conclusivas para explicá-las, que apontam para uma junção de fatores biopsicoambientais.

Para Torres (1994, p.151), a inconclusão das causas do câncer e de suas medidas preventivas são fatores que o tornam mais ameaçador. Para essa autora, “o câncer designa um grupo de doenças que parece vir de nenhum lugar, ataca sem avisar e pode potencialmente se localizar em qualquer lugar e em cada lugar dentro do indivíduo”. Nunes (1980) enfatiza que o câncer representa uma tríplice ameaça: dor física, mutilação e morte. Quando a doença é diagnosticada logo no início de seu desenvolvimento, o prognóstico é bastante favorável para os diversos tipos de câncer, apesar de a doença ainda representar forte estigma social.

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De acordo com Sontag (1984; 1989), tende-se a associar o câncer às pessoas deprimidas, melancólicas ou que reprimem suas emoções, ao passo que a AIDS era até há pouco tempo associada a festas, farras e comportamentos promíscuos. Atualmente, a AIDS pode associar-se a quaisquer comportamentos de risco, até mesmo ao sexo sem proteção entre parceiros fixos. Tal fato, segundo a autora, monopolizou fobias e paranóias da população em todo o mundo, fazendo com que as pessoas se tornassem mais condescendentes com o câncer.

Bromberg (1998) apresenta os estudos de Butter, Hittinson, Wade e McCarthy (1991), que diferem o perfil dos portadores de HIV/AIDS do perfil dos pacientes oncológicos, pois aqueles tendem a ser mais jovens, despendem mais tempo sob cuidados, têm uma rede familiar ou de cuidadores mais complicada e apresentam uma gama mais variada de problemas médicos.

Por se tratar de doença infecto-contagiosa, a AIDS desperta medo, afastamento e...

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