Reflexões sobre epistemologia: Bachelard e Morin

AutorJean Mauro Menuzzi
Páginas217-235

Jean Mauro Menuzzi. Possui licenciatura em Filosofia, Psicologia da Educação e História, área em que é especialista, cursou Teologia, é bacharel em Direito e Mestrando do Programa de Pós-Graduação strictu sensu, Mestrado em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI - Campus Santo Ângelo, funcionário público estadual e professor universitário na URI - Campus Frederico Westphalen e na Sociedade Educacional de Itapiranga – FAI.

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Introdução

A humanidade vive um complexo processo de transformações que atuam em escala local e global integrando e conectando as comunidades e as pessoas que as compõem em novas combinações de espaço e tempo, redefinindo as identidades,Page 218 compreensões e os papéis dos indivíduos. Este conjunto de mudanças pode ser sintetizado como “globalização”2.

Tal fenômeno contemporâneo está associado ao multiculturalismo, entendido como a tensão entre a diferença e a igualdade, ou seja, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de redistribuição que permite a realização da igualdade.

Fomentada pela globalização e pelo multiculturalismo3, brota uma nova reflexão acerca da filosofia e o papel que esta exerce sobre a ciência, revisando seus fundamentos e, mais que isto, seu papel social como garantidora desta nova ordem.

Tal reflexão conduz às teorias de Gaston Bachelard e Edgar Morin. Seus estudos acerca da epistemologia, contrários à relativização do conhecimento, questionam a universalidade e analisam a história para mostrar que a verdade é circunstancial e que a intersubjetividade e a consensualidade não asseguram a certeza.

A pretensão do presente artigo está voltada, portanto, à problematização do pensamento científico e, para tal, utiliza-se da contribuição de duas vertentes epistemológicas, Gaston Bachelard e Edgar Morin. Buscar-se-á a visão de ciência e de construção do conhecimento nos escritos dos autores, uma vez que suas teorias são convergentes em muitos sentidos, dentre eles a critica a aspectos da ciência clássica e a afirmação da necessidade de construção de um pensamento complexo para a ciência.

O projeto de Bachelard consiste “em dar às ciências a filosofia que elas merecem”. Neste intento, a presente pesquisa, revisita sua epistemologia, preocupando-se com as temáticas e categorias fundamentais, principalmente discutindo a produção do conhecimento, a descontinuidade da ciência e seu processo de ruptura, o racionalismo aplicado, a noção de perfil epistemológico e de obstáculos epistemológicos, procurando compreender o projeto epistemológico bachelardiano.

Edgar Morin, por sua vez, propõe uma epistemologia da complexidade, ou seja, uma epistemologia adequada ao pensamento complexo, que rompe com a matriz moderna, propondo um novo posicionamento do indivíduo diante da realidade e, portanto, uma nova forma de conhecimento. Nesta perspectiva, opõe-se diretamente a ciência moderna que se funda, segundo ele, em um paradigma da simplificação, que tem como princípios a disjunção, a redução e a abstração.

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Justifica-se, por fim, a necessidade da pesquisa, por ser imperativo refletir sobre o papel do conhecimento científico na sociedade atual. Neste intento, Bachelard e Morin têm muito a contribuir.

1 Epistemologia

O termo epistemologia provem do grego episteme que significa ciência e logos, que significa teoria. Em termos gerais, é a disciplina que toma as ciências como objeto de investigação com o intuito de reagrupar a crítica do conhecimento científico, a filosofia e a história das ciências (JAPIASSU e MARCONDES, 1991. p. 83).

As atuais reflexões acerca do conhecimento e à diversidade de questões que o envolve têm se voltado a Epistemologia visto que nela podem ser encontrados tanto filósofos quanto cientistas. “[...] o conceito de “epistemologia” serve para designar, seja na teoria geral do conhecimento, seja em estudos mais restritos concernentes à gênese e à estruturação das ciências” (JAPIASSU e MARCONDES, 1991. p. 83). No primeiro caso, terá natureza filosófica, no segundo estará mais afeita às ciências.

Percebe-se que a epistemologia é proteiforme e, segundo o contexto, pode ser lógica, filosofia do conhecimento, sociologia, psicologia, história, e assim por diante, mas sempre possuindo como questão central:

[...] estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um puro registro, pelo sujeito, dos dados já anteriormente organizados independentemente dele no mundo exterior, ou se o sujeito poderá intervir ativamente no conhecimento dos objetos (JAPIASSU e MARCONDES, 1991. p. 83).

Assim, mesmo que se busquem simplificações, ainda assim se encontra em aberto a questão acerca de qual seria seu domínio de saber. E, mais que isso, seria ela uma ciência ou uma filosofia?

A resposta a tais questões depende de sua relação com o conjunto de ciências das quais se aproxima, quais sejam: Teoria do Conhecimento, Filosofia das Ciências, Metodologia e Ciências do Homem.

1. 1 Epistemologia e Teoria do Conhecimento

Por Teoria do Conhecimento, entende-se a disciplina filosófica que tem por objeto estudar os problemas levantados pela relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido (JAPIASSU e MARCONDES, 1991. p. 83). Neste sentido, a Epistemologia, que trata somente do conhecimento científico, poderia ser entendida como parte da Teoria do Conhecimento.

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Ocorre que, no caso do empirismo lógico4, que entende que a linguagem da física constitui um paradigma para todas as ciências, de modo a ser possível alcançar uma ciência unificada, só reconhecendo como conhecimento aquele científico.

Por outro lado, ainda, podem ser tomadas como sinônimos, da mesma forma em que ocorre com Piaget que, em sua teoria acerca da aquisição de conhecimentos na criança, vincula teoria do conhecimento e níveis de conhecimento cientifico.

1. 2 Epistemologia e Filosofia das Ciências

Bachelard assume uma Epistemologia como filosofia das ciências, que trata da relação entre o sujeito cognocente e o objeto conhecido, mas adequada ao pensamento contemporâneo. Não aceita a filosofia como síntese dos resultados gerais do pensamento científico, mas propõe um modelo aberto e não dogmático, nem voltado às verdades primeiras, acabadas, definitivas; uma filosofia que ultrapassa os próprios princípios, adequada às ciências contemporâneas.

Na obra “Filosofia do não” Bachelard expõe claramente o problema a ser enfrentado: “[...] o cientista pensa a partir de um pensamento sem estrutura, sem conhecimento; o filósofo apresenta a maior parte das vezes constituído, dotado de todas as categorias indispensáveis para a compreensão do real” (BACHELARD, 1974, p. 164).

Aos cientistas, Bachelard mostra a necessidade de uma reforma subjetiva, pois o pensamento científico transforma os próprios princípios do conhecimento. Aos filósofos, propõe considerar o conhecimento como uma evolução do espírito, que aceita variações.

Propõe uma Epistemologia ligada à Filosofia, não submetida aos sistemas clássicos, mas com instrumentos teóricos próprios à cultura científica contemporânea. Busca assim conciliar o discurso filosófico e o discurso científico.

Avalia ele, que, para o cientista, a filosofia é “um resumo dos resultados gerais do pensamento científico, situado no reino dos atos” (BACHELARD, 1974, p. 161). Já “[...] o filósofo pensa que a filosofia das ciências tem por missão articular os princípios das ciências com os princípios de um pensamento puro, desinteressado dos problemas de aplicação efetiva” (BACHELARD, 1974, p. 162). Tais posicionamentos são obstáculos epistemológicos que colocam limitações ao pensamento, pois, de um lado, valorizam o geral, de outro, o imediato.

Bachelard propõe operar dialeticamente os valores experimentais e os valores racionais, características da contemporaneidade, onde o “empirismo precisa ser compreendido e o racionalismo precisa ser aplicado” (BACHELARD, 1974, p. 162/163).

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[...] um empirismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas não pode ser pensado nem ensinado; um racionalismo sem provas palpáveis, e sem aplicação à realidade imediata não pode convencer plenamente. O valor de uma lei empírica prova-se fazendo dela a base de um raciocínio. Legitima-se um raciocínio fazendo dela a base, de uma experiência (BACHELARD, 1974, p. 166).

Na dialética dos conceitos construídos e reconstruídos pelo pensamento científico, nada é definitivo e imutável, em consonância, a filosofia das ciências assume um pluralismo filosófico, capaz de informar tanto a experiência quanto a teoria.

Usando como instrumento teórico o perfil epistemológico, Bachelard caracteriza as diversas regiões filosóficas implícitas nos conhecimentos objetivos particulares abstraindo-lhes a ordem da realidade epistemológica, adotando como realismo-empirismo-racionalismo, dando a entender que “[...] um conhecimento pode expor-se numa filosofia particular; mas não pode fundar-se numa filosofia única; seu progresso implica aspectos filosóficos variados” (BACHELARD, 1974, p. 186/187).

Portanto, o vetor epistemológico, ao tratar do conhecimento científico, vai sempre do racional ao real e não em sentido contrário, entendendo como objetivo primordial do racionalismo refletir sobre o conhecimento científico atual, em sua atividade racional e técnica, por meio da dialética do racional e do experimental. Defende, portanto, uma razão aberta e evolutiva, contrária à razão imutável.

Os pressupostos epistemológicos de Bachelard fundam-se em uma nova...

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