Entre cooperação reflexiva e democracia procedimental

AutorMaria Eugenia Bunchaft
CargoProfessora da Unifoa
Páginas142-159

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Introdução

A filosofia de Axel Honneth sobre reconhecimento procura analisar a relação entre a teoria do desenvolvimento psíquico e a evolução moral da sociedade, de forma a alcançar novos parâmetros capazes de renovar a Teoria Crítica. O elemento fundamental do seu arcabouço teórico constitui a concepção de identidade como uma luta intersubjetiva por reconhecimento mútuo. Honneth, em seu livro, Luta por reconhecimento,2 desenvolve uma psicologia moral capaz de conectar questões de justiça distributiva com lutas intersubjetivas por reconhecimento. Seguindo o modelo hegeliano, considera o reconhecimento como uma questão de autorrealização, terminando por reduzi-lo a uma estrutura de condições intersubjetivas, delineadas por meio de uma dimensão psicológica do reconhecimento. Ressaltamos que, para Honneth, a justiça não pode ser desvinculada de uma dimensão ética, porque, sem vislumbrar uma concepção de bem, é impossível criticar injustiças contemporâneas. Trata-se, portanto, de uma concepção de reconhecimento associada à psicologia moral, concebendo o potencial emancipatório das experiências de sofrimento e exclusão como a base motivacional das lutas por reconhecimento mútuo.

Jürgen Habermas desenvolveu uma concepção procedimentalista de direito e democracia, cujos influxos teóricos são fundamentais para a filosofia política do reconhecimento. Nas obras A inclusão do outro3 e Direito e democracia,4 o autor sublinha ser o sistema de direitos sensívelPage 143às demandas por reconhecimento de sociedades multiculturais, de forma que grupos culturais devem articular em processos deliberativos aquelas tradições que desejam perpetuar. Inobstante, para Honneth, a institucionalização de procedimentos capazes de alicerçar as expectativas normativas das demandas identitárias seria insuficiente para garantir efetiva justiça social e, portanto, incapaz de abarcar o substrato moral inerente às lutas intersubjetivas por reconhecimento: a experiência do desrespeito. Com fundamento no filósofo pragmatista John Dewey, Honneth delineia um instrumental teórico capaz de articular democracia, divisão cooperativa do trabalho e liberdade. Com efeito, pretendemos apresentar uma contraposição teórica entre o modelo procedimental habermasiano e o modelo de cooperação reflexiva desenvolvido por Axel Honneth, a fim de aprofundar a compreensão acerca da filosofia política do reconhecimento.

1 O procedimentalismo habermasiano

A concepção procedimentalista habermasiana assume especial relevância no debate sobre o multiculturalismo. Para o autor alemão, o sistema de direitos é perfeitamente compatível com as demandas por reconhecimento de sociedades multiculturais, de forma que grupos culturais devem tematizar em processos deliberativos aquelas tradições que desejam perpetuar ou abandonar. Em Direito e democracia, Habermas rompe com a tradição liberal ao estabelecer a co-originalidade entre autonomia pública e privada, sendo capaz de responder aos desafios propostos pelas críticas feministas de forma coerente.5 Sem direitos fundamentais, que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria como institucionalizar as condições sob as quais os indivíduos podem fazer uso da sua autonomia pública; mas, sem o exercício de sua autonomia pública, os cidadãos não poderiam alcançar uma real compreensão acerca de suas necessidades e concepções de bem. A seguinte passagem do pensamento habermasiano é conclusiva:

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[...] os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimemente assegurada; mas também o fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem o uso adequado de sua autonomia política enquanto cidadãos. [...]6

Desse modo, para Habermas, a ideia de direitos humanos deve estar atualizada democraticamente, porquanto autonomia pública e privada são co-originárias, pressupondo-se mutuamente, de forma que nem direitos humanos nem soberania popular podem pretender primazia um sobre o outro. A partir do entrelaçamento entre o princípio do discurso e a forma jurídica, Habermas estabelece o princípio da democracia, manifestando-se por meio de uma gênese lógica de direitos. Nas palavras do filósofo alemão,

[...] o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.7

Nessa trajetória teórica, o herdeiro da Escola de Frankfurt introduz as categorias de direitos que geram o status das pessoas de direito. Tais direitos possuem uma dimensão deontológica, não sendo necessário recorrer à religião ou à metafísica para justificá-los. Em passagem elucidativa, o autor enumera os seguintes direitos que não podem ser objeto de violação pelo processo democrático:

1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. Esses direitos exigem como correlatos necessários.

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2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito.

3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma de proteção jurídica individual. [...]

4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direitos legítimo. [...]

5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) a (4). [...]8

Assim, a fim de assegurar a expectativa normativa de que o seu direito subjetivo seja assegurado, é necessário que o sujeito de direito se situe em uma perspectiva mais ampla capaz de pressupor a concessão de direitos fundamentais por todos os membros de uma sociedade de livres e iguais. Nas palavras de Habermas "é preciso, no entanto, empreender uma mudança de perspectivas, a fim de que os civis possam aplicar por si mesmos o princípio do discurso".9 E conclui: "Pois, enquanto sujeitos de direito, eles só conseguirão autonomia se se entenderem e agirem como autores dos direitos aos quais desejam submeter-se como destinatários".10 A autonomia, portanto, é dialógica e decorre de um processo de autolegislação.

Sob essa ótica, de acordo com a ontologia habermasiana, é fundamental que os participantes de processos argumentativos estabeleçam normas capazes de obter o consenso de todos os afetados. Habermas assevera que tais direitos permitem o exercício da autonomia pública, ou seja, são condições procedimentais que institucionalizam a formação política da opinião e da vontade. Em síntese, na perspectiva habermasiana, a verdade moral é constituída pela busca de entendimento decorrente dePage 146uma discussão moral real que respeita certas condições procedimentais. Habermas assinala que o discurso jurídico é muito mais amplo que o discurso moral, pois, enquanto as normas de ação são legitimadas em torno do princípio moral, as normas de direito são estruturadas pelo princípio democrático e justificadas por razões pragmáticas, ético-políticas e morais.

Inobstante, para Honneth, a institucionalização de procedimentos para legitimação de decisões políticas, na sua percepção, seria insuficiente para garantir justiça social, porquanto é incapaz de contemplar o substrato moral ínsito a qualquer processo intersubjetivo de reconhecimento e sua base motivacional: a experiência do desrespeito. Nesse sentido, a polêmica com Habermas é inevitável. O item seguinte examina o modelo de cooperação reflexiva desenvolvido por Honneth e seu diálogo com a filosofia habermasiana.

2 O modelo de cooperação reflexiva

De início, Honneth delineia uma segunda alternativa teórica ao modelo liberal, combinando comunidade democrática com uma forma reflexiva de cooperação comunitária, articulando democracia, divisão cooperativa do trabalho e liberdade. Diante do exposto, passamos à análise da influência de Dewey sobre a ontologia filosófica de Honneth. Para Honneth, o indivíduo só alcança uma liberdade plena, quando contribui, no seio da divisão do trabalho, com "suas próprias atividades para a manutenção da sociedade",11 pois a autorrealização individual estáPage 147relacionada ao reconhecimento de nossas singularidades socialmente úteis. A centralidade da esfera pré-política da divisão social do trabalho assume especial relevância para Honneth, porquanto esta

[...] deve ser regulada de forma razoável e justa para que cada integrante da sociedade possa se ver como um participante ativo em um empreendimento cooperativo, pois, sem tal consciência de responsabilidade compartilhada e cooperação - que Dewey corretamente assume - o indivíduo nunca conseguirá fazer dos procedimentos democráticos os meios para resolução de problemas comuns.12

Nesse particular, trata-se de um modelo mais denso de formação democrática da vontade política no qual "o surgimento da liberdade individual da comunicação não é obtido do discurso intersubjetivo, mas da cooperação comunal".13 Os procedimentos democráticos só implicam a construção de uma sociedade mais justa, se esta consagra uma divisão do trabalho na qual cada indivíduo alcança efetiva estima social por suas habilidades e talentos, assumindo ocupações socialmente estimadas, pois a esfera pública só funciona adequadamente se todos os indivíduos são incluídos no processo de reprodução do bem...

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