Reflexões sobre o agravamento do risco nos seguros de danos

AutorErnesto Tzirulnik
Páginas13-55
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Certa vez declarei a uma jornalista que jamais havia lido
uma apólice de seguro. Atuava há décadas como advo-
gado e consultor de seguradoras e resseguradoras. Essa
declaração acabou sendo utilizada por adversários em
um processo judicial para sustentar que minha crítica
a determinada apólice era fruto dessa costumeira negli-
gência confessada. De lá para cá, continuo casto. Não
me interessam as apólices, nem os amontoados autoritá-
rios de leis, decisões judiciais e doutrinas que costumam
caracterizar certos livros jurídicos de grande aceitação,
ou obras escritas e palestras em que a advocacia se
traveste com gurino acadêmico, malformando os cren-
deiros. A operação jurídica requer sensibilidade e conhe-
cimento dos princípios e das regras básicas da regência
social. Costuma impressionar-me o discurso clarividente
sobre institutos jurídicos com os quais lido cotidiana-
mente, feito por leigos, e penso: “se zer um curso de
direito vai empostar a fala e perder a clareza”.
No início dos anos 1980, criei e dirigi o departamento
jurídico de uma das mais téc nicas companhias seguradoras
brasileiras, que se mantinha, há anos, líder do cosseguro da
apólice multirrisco da Itaipu Binacional S.A., a maior obra
REFLEXÕES SOBRE O AGRAVAMENTO
DO RISCO NOS SEGUROS DE DANOS
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de infraestrutura da América do Sul. O seguro garantia
praticamente quaisquer riscos que ameaçassem os inte-
ragentes econômicos do empreendimento, mas não havia
uma apólice. O conteúdo do complexo e poliédrico seguro
compunha-se das boas práticas securitárias e as atas de
reuniões entre os técnicos da seguradora e dos segurados.
Aquilo contrariava tudo que eu havia lido para habilitar-
-me ao emprego. Meu superior hierárquico, vice-presidente
técnico da companhia, Sr. Fernando Lopes Nunes, vendo-
-me perplexo, cuidou de explicar que o segredo era fazer
boas perguntas aos segurados para bem conhecer os inte-
resses que lhes motivavam a contratar o seguro; dar-lhes
boas respostas para que zessem as melhores opções de
coberturas; acompanhá-los, sempre que possível, para
evitar desvios de percurso; e provê-los com as soluções
possíveis, além de sempre lembrar que o mais importante
é unir o interesse que se assegurou à regra de hermenêutica
in dubio pro segurado. Meu orientador já faleceu. O seguro,
maltratado pela exagerada nanceirização dos negócios
do último quarto de século, continua vivo. A técnica, os
princípios jurídicos e a ética negocial nunca morrem com
os homens, nem podem morrer com as modas e as crises
econômicas. Isso seria apagar a história e comprometer o
futuro da humanidade.
Durante minha presença na seguradora, aconteceu
de ser redigida a primeira versão da apólice multirrisco
de Itaipu, com a instituição da “responsabilidade civil
cruzada”, entre outras novidades. Quando deixei a compa-
nhia e abri meu escritório, fui chamado a escrever muitas
apólices. Após aprovadas pelas diretorias e pelos conselhos
das clientes, as novas condições contratuais que eu havia
redigido seguiam para o a rquivo morto. Isso acontecia por
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diversas razões. Ora porque os corretores preferiam que
as exclusões fossem menos enfáticas, para não afugentar
os interessados; noutras ocasiões, porque as autoridades
(susep e irb) insistiam no uso dos textos habituais, com
linguajar arbitrário, cuja leitura atenta sempre faz despen-
car surpresas desagradáveis, dispersadas e embaralhadas
nas condições gerais, especiais, particulares, especicações,
anexos, endossos e coberturas adicionais que dão com uma
mão e tiram com a outra. Isto acontece ainda hoje, trauma-
tizando ou simplesmente mantendo os mais atentos leitores
em estado de perplexidade.
Por isso, o melhor caminho para se conhecer o seguro
é identicar o interesse segurado e os riscos que podem
ameaçá-lo. Obtida a resposta a isso, não será outra “coisa”
o que se possa ter assegurado. É uma pesquisa sempre inte-
ressante porque acultura sobre as atividades asseguradas
e útil porque reconstrói, com sentido prático e econômico,
o conteúdo do seguro, apesar da apólice.1
1 A chamada teor ia do interesse instal ou-se como eixo do seguro mod erno
há mais de dois sé culos. A primeira obra dout rinária monográ ca conhe-
cida é do início do s éculo XX, anterior ao Código Civ il de 1916 que, no
entanto, deixou d e aproveitá-la: EHRE NBERG, Victor. Das ‘i nteresse’ im
Versicherungsrecht. Munique e L eipzig: Duncker & Humblot, 1915. E la
é reavivada nos anos 19 60 por Comparato, na sua tese de l ivre-docência
sobre o contrato de se guro de crédito (ver nota 12). Para estu dos mais
recentes, su giro consultar as se guintes obras: TZI RULNIK, Er nesto. “Em
torno do interes se segurado e da respo nsabilidade civil”. In: IBDS; ESCO LA
PAULISTA DE MAGI STRATUR A (Coord.). Seguros: uma questão atu al.
vol. III. S ão Paulo: Max Limonad, 20 01. pp. 319-397. (Col. Estudos de
Direito do Seg uro); TZIRULN IK, Ernesto. S eguro de riscos d e engenharia:
instru mento do desenvolvimento. vol. XI V. São Paulo: Roncarati: IBDS ,
2015. p. 103 e s. (Col. Estudo s de Direito do Seguro); T ZIRULNI K, Ernesto;

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