A contra-reforma agrária e os caminhos da desarticulação social no Brasil

AutorNelson Oliveira
CargoNelson Oliveira é doutor em Economia (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp), professor da Escola de Administração e do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e foi durante muitos anos redator dos Cadernos do CEAS. Do mesmo Autor, ver 'Neo-reformismo e fragmentação social (ou só é 'otimista...
Páginas6-22
A CONTRA-REFORMA AGRÁRIA
E OS CAMINHOS DA DESARTICULAÇÃO SOCIAL NO BRASIL
NELSON OLIVEIRA *
Neste ensaio, pretende-se efetuar uma interpretação crítica de um arraigado
anti-reformismo que permeia não apenas práticas e iniciativas políticas dos
grandes proprietários de terra, mas que gradualmente tende a se tornar
consensual entre os mais distintos setores de uma burguesia emergente, e
numa ideologia do conjunto das classes dominantes do país. Suas premissas
fundamentais são: primeiro, que as mais importantes articulações políticas
efetuadas entre finais do Império e início do período republicano, ao se
restringirem fundamentalmente à defesa do latifundismo vigente, se tornaram
determinantes não só para o futuro da agricultura latifundiária mas, sobretudo,
para o caráter que passa a ser assumido pelas lutas por democratização no
Brasil; segundo, que, nas mais distintas conjunturas, a condução política da
administração governamental, subordinada a determinações quase exclusivas
desses núcleos mais influentes de poder fundiário, e de seus aliados no capital
comercial, além de repercutir numa conformação estatal profundamente
autoritária que passa a brotar a partir daí responde pela construção de uma
das economias mais socialmente desarticuladas do mundo capitalista, na sua
tradução mais concreta de exclusão social.
As posturas anti-reformistas das classes proprietárias, no geral, e das agrárias,
em particular, são tomadas aqui como expressão maior (ou condição) para a
efetivação de um pacto anti-republicano que não só demarca os limites de uma
ordem sócio-política como estabelece os marcos de um projeto de nação que,
de tão esgarçado, tende a se projetar como algo quase sempre politicamente
inacabado.
1. REFORMA CONTRA A REFORMA: UM HIBRIDISMO SINGULAR
O trato do campo como espaço autônomo sempre serviu muito bem aos que
se recusavam a ver na profundeza da miséria rural uma manifestação da
contradição que move o capital a cada passo de seu avanço e da sua crise.
Pequenos, médios e grandes produtores são reproduzidos no mesmo
diapasão em que se processam as lutas de classe, tanto podendo desaparecer
como resistir, que nenhuma dessas configurações pode ser tomada como
estável ou sempre necessária em qualquer circunstância. Neste caso, toda
funcionalidade das classes ao capital é móvel e dinâmica, pouco importando
aqui o setor em que estejam localizadas. Portanto, qualquer resistência que
não desse conta dessa realidade, sobretudo no âmbito dos pequenos e
proletarizados, podia ter efeito contrário ao desejado muitas vezes pelos que
estavam à frente das lutas. O discurso reformista passou a assumir uma
conotação cada vez mais híbrida, fruto dessas vacilações que, no fundo,
refletiam as tendências dominantes de assumir o campo como uma totalidade
estrutural ou expressão de uma classe sem raízes efetivas no processo social.
Uma formatação híbrida desse discurso reformista ambíguo pode ser
encontrada nos mais diferentes estudos e avaliações sobre a reforma agrária
no Brasil. Em sua grande maioria, parte importante desses estudos ou
atentaram para a reforma como efetivação de políticas de ajustes
circunstanciais na agricultura, movidas por demandas puramente conjunturais,
ou para a sua realização como uma necessidade histórica, em contextos
demarcados por lutas de classe com diferentes graus de intensidade. Uma
reforma como simplesmente meio ou instrumento, ou como algo que se esgota
em si mesma, não dá conta da diversidade de alternativas que derivam daí: um
ajuste nas condições de inserção, uma revolução nas condições sociais ou
uma demonstração da viabilidade técnica do capitalismo agrário, entre outras.
De qualquer modo, tende a haver um quase-consenso: reformar não passa de
uma via efetiva de integração virtuosa da agricultura no dinamismo comandado
pelas forças mais avançadas do capital. As revoluções agrícolas soam de
forma predominante como ajustes técnicos e financeiros. Não chega a ficar
muito claro o sentido maior da reforma, desde que a questão agrária tende a
ressaltar das próprias demandas de integração setorial e reprodução social nos
níveis mais avançados já alcançados pelo capital.
Não menos ambíguos, porém, são os que defendem a reforma como
componente fundamental de uma luta de resistência dos pequenos produtores
agrícolas contra a penetração do grande capital no campo. Nesse caso, essas
ambigüidades tendem a ser até mais profundas, considerando que se
restringem quase que exclusivamente à defesa do reformismo agrário como
tábua de salvação para um sistema que não resolve seus problemas mais
cruciais. São esses os que localizam na exclusão dos mecanismos dominantes
de acumulação uma forma de inclusão, sob o escudo ideológico de uma
resistência nem sempre muito explícita. A reforma aqui é encarada como a
alternativa, ela mesma, contra a fome, a miséria e o desemprego, e a forma
ideal de contrapor o pequeno ao grande proprietário, contribuindo para unificar
a agricultura no seu conjunto como parte de um mesmo desiderato: como algo
que deve ser protegido e preservado.
O problema não parecer residir no capital, mas nas suas dimensões. O conflito
parece residir na superposição de uma categoria sobre as demais dos
grandes sobre os pequenos e dos privilégios daí decorrentes. As lutas de
classe se transformam na defesa de categorias sociais não contempladas pela
política oficial. Daí sua dúbia reivindicação sentimental de cunho saudosista,
nunca se sabendo ao certo se sua justificativa é a fome de terras, a defesa de
um espaço ou resistência cultural de deserdados da terra ou a dificuldade de
utilizá-la produtivamente, num contexto profundamente demarcado pela
exigência de obtenção de elevada produtividade e eficiência produtiva no
campo. Nada disso é deixado muito claro, como se o enunciado da proposta,
apenas isto, tivesse o dom de suplantar qualquer outra exigência de precisão
dos seus objetivos; como se a reforma pudesse se justificar em si mesma, sem
qualquer outro atenuante.
Neste emaranhado de postulações ambíguas, a política oficial, a despeito de
repercutir essas mais diferentes manifestações e tendências, jamais se
conduziu como um árbitro neutro. Ela foi sempre afirmativa e facciosa,

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