O processo civil na reforma constitucional do poder judiciário

AutorCândido Rangel Dinamarco
CargoProfessor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP - Universidade de São Paulo.
Páginas1-10

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1. Da constituição ao processo

É natural que uma Reforma Constitucional do Poder Judiciário atue com expressiva intensidade sobre a ordem processual, dada a notória filiação do direito processual à Constituição e dada a íntima relação existente entre os modos de exercício da jurisdição e a configuração funcional dos órgãos e organismos que a exercem (organização judiciária). Só isso bastaria para que a recente Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, responsável pela chamada Reforma do Poder Judiciário, tivesse relevante atuação sobre o sistema do processo civil brasileiro, ao menos como reflexo das alterações impostas à estrutura e funcionamento dos organismos jurisdicionais. Mas também diretamente a nova emenda atuou sobre o processo civil, ditando uma série de regras tipicamente processuais relevantes, entre as quais algumas que sequer mereceriam estar no plano constitucional - como a que manda dar distribuição direta a todas as causas e recursos e a que recomenda o automatismo judiciário (Const., art. 93, incs. XIV e XV, red. EC n. 45, de 8.12.04).

Diante dessa necessária relação entre o que vai pela Constituição Federal e o que em conseqüência vem a ocorrer na ordem processual, é também natural que todo estudo sistemático de direito processual civil seja atingido e em alguma medida comandado pela Reforma, sendo indispensável que nós, processualistas e operadores do processo, nos atualizemos e nos adaptemos aos novos preceitos agora lançados pela emenda reformadora. É esse o propósito do presente estudo, elaborado em busca da fidelidade ao que veio a ser inserido na Constituição, da correta interpretação dos textos legais à luz dessas novas normas e de uma sistematização coerente com a nova ordem superiormente estabelecida.

Este é deliberadamente um ensaio sem qualquer pretensão de ser erudito ou profundo. Foi inicialmente concebido como roteiro para a revisão do livro Instituições de direito processual civil, em cujos títulos, capítulos e tópicos era necessário inserir as novidades constitucionais vindas da emenda n. 45; diante da complexidade das inúmeras disposições ali contidas, senti que uma revisão não seria completa nem sistematicamente bem composta se não fosse precedida dessa tentativa, que o presente escrito representa, de pôr em ordem tudo quanto a emenda contém. E depois, feita a revisão e aplicado o que vinha da emenda pelo modo que me pare- ceu mais adequado, o roteiro transformou-se em artigo e aqui vai em busca da aprovação dos exigentes leitores. Page 2

2. O conteúdo substancial da reforma

Desde o início, a Reforma do Poder Judiciário trazia em si uma proposta de renovação não somente da estrutura anatômica do Poder Judiciário, mas também das linhas-mestras de sua atuação. Importava acima de tudo, como todos sentiam, gerar instrumentos ágeis para uma atuação mais pronta e eficaz na oferta do acesso à justiça, além de meios para coibir certas mazelas da Instituição. De um lado, eliminar ou ao menos atenuar as lastimáveis demoras, que são fonte de corrosão dos direitos e alimento ao tempo inimigo, do qual com sabedoria falava Francesco Carnelutti. De outro, combater os focos de distorção dos sagrados deveres e compromissos dos magistrados, nem sempre empenhados em bem servir, nem sempre interessados em serem independentes, nem sempre orientados pelos melhores dos sentimentos humanos ou éticos. Na ementa do parecer emitido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal sobre o projeto que resultou nessa Emenda Constitucional, consta somente que ela "introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário", mas essa redação é enganosa, porque o conteúdo subs- tancial da emenda n. 45 é na realidade muito mais amplo.

Como se esperava e como esperava a opinião pública, a emenda n. 45 não se limita a interferir na anatomia judiciária, o que seria ao menos uma quase-inutilidade. Na realidade, pouco existe de novo pelo aspecto puramente estrutural, pois nenhum órgão jurisdicional foi criado, nenhum órgão jurisdicional foi reestruturado em sua composição. Instituiu-se sim um novo e importantíssimo astro na constelação judiciária do país, que é o Conselho Nacional de Justiça, o qual é um órgão judiciário porque integra o Poder Judiciário (art. 92, inc. I-A, red. EC n. 45, de 8.12.04), mas não é um órgão jurisdicional porque não exerce jurisdição; também sem função jurisdicional são as Ouvidorias de Justiça (art. 103-B). A única alteração puramente estrutural referente aos órgãos jurisdicionais foi aquela consistente em extinguir os cinco Tribunais de Alçada ainda existentes no país (EC n. 45, de 8.12.04, art. 4º).

Com um propósito reformador mais profundo que aquele declarado, a emenda de 2004 apresenta, em síntese, esse complexo conteúdo substancial: a) estabelece algumas, embora poucas, regras sobre a estrutura desse Poder; b) institui a continuidade da atividade jurisdicional, com a proibição de férias coletivas em todas as Justiças; c) traz novas normas relacionadas com os deveres e direitos dos magistrados, com especial realce para a chamada quarentena; d) determina a criação de um órgão administrativo com amplo poder disciplinar e censório, que é o Conselho Nacional de Justiça; e) também manda instituir Ouvidorias de Justiça no âmbito das Justiças da União e dos Estados, com a finalidade de captar os sentimentos e as reclamações dos cidadãos em relação aos órgãos judiciários e canalizá-los inclusive ao Conselho Nacional de Justiça; f) inclui entre as competências do Supremo Tribunal Federal a de emitir súmulas vinculantes; g) altera ligeiramente a competência originária e recursal do Supremo Tribunal Federal e a do Superior Tribunal de Justiça, em associação com alguma alteração nas hipóteses de admissibilidade do recurso extraordinário e do especial; h) submete o recurso extraordinário ao requisito da repercussão geral, que é uma repristinação da vetusta relevância da questão federal e depende de regulamentação em lei; i) manda que a distribuição de feitos e recursos seja imediata, em todo juízo ou tribunal; j) recomenda o automatismo judiciário, para que juízes deleguem a serventuários certas atividades administrativas e atos de impulso processual sem cunho decisório; k) traz uma série de disposições referentes ao Ministério Público, buscando uma equivalência de seus direitos, deveres e impedimentos, aos direitos, deveres e impedimentos dos magistrados; l) manda implantar um Conselho Nacional do Ministério Público e ouvidorias do Ministério Público, com vista ao efetivo controle da Instituição e do comportamento de seus integrantes.

Há ainda alguns outros dispositivos, de menor interesse para o processualista e de menor repercussão prática, que por essa razão não serão objeto de exame específico. Entre eles, vêem-se p.ex. (a) alguns que apenas reafirmam e remodelam fórmulas referentes ao magistrado, ingresso na carreira, progressão nesta, deveres e proibições, sanções etc. (art. 93, incs. I, III, VII, VIII, VIII-A e art. 95, par. único, inc. IV); b) outros que reafirmam tópicos da tutela jurisdicional ao processo, como a publicidade e motivação das decisões judiciárias (art. 93, incs. IX-X); c) um que reformula o que antes já estava disposto sobre o Órgão Oficial dos tribunais, para que a metade Page 3 de seus integrantes seja escolhida por eleição (art. 93, inc. XI); d) alguns ainda que especificam regras sobre a independência financeira e administração orçamentária do Poder Judiciário (art. 99, §§ 3º, 4º e 5º) e do Ministério Público (art. 127, §§ 4º a 6º); e) outros, reafirmando e remodelando fórmulas referentes ao magistrado, ingresso na carreira, progressão nesta, deveres e proibições, sanções etc. em relação aos integrantes do Ministério Público (art. 128, § 5º, inc. I. letra b e inc. II, letras e e f, e § 6º; art. 129, §§ 2 e 3º); f) idem, em relação às Defensorias Públicas (art. 134, § 2º), etc.

Além disso, a nova redação dada ao art. 114, inc. I da Constituição Federal pretendeu incluir na competência da Justiça do Trabalho os litígios em matéria estatutária envolvendo "entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios". Mas essa disposição foi suspensa por liminar que a Presidência do Supremo Tribunal Federal concedeu em ação direta de inconstitucionalidade movida pela Associação dos Juízes Federais - e assim é a situação vigente no momento em que este escrito é concluído.

3. Sobre o regime funcional dos juízes

Vieram na Reforma algumas normas não tão inovadoras nem portadoras de tanto impacto, referentes aos magistrados e à sua vida funcional. Foi reiterado, com ligeiras alterações aperfeiçoadoras, o que antes já se dispunha sobre o ingresso na carreira pelo cargo de juiz substituto (art. 93, inc. I), sobre a promoção pelos critérios alternados de antigüidade e merecimento, com a fixação de...

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