A reforma trabalhista: tramitação, 'vacatio legis' e direito intertemporal

AutorFabiano Coelho de Souza
Páginas17-25

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1. Introdução

Neste estudo, iremos iniciar abordando a tramitação legislativa que resultou na Lei n. 13.467/2017, denominada reforma trabalhista. A seguir, examinaremos a vacatio legis e o início da vigência da norma nos campos individual, coletivo e processual. Por ?m, analisaremos o tormentoso tema do direito intertemporal e como a Reforma comunicará com os contratos, normas coletivas e relações processuais em curso.

2. Tramitação legislativa na câmara dos deputados

A reforma trabalhista nasceu do Projeto de Lei n. 6.787/2016, apresentado pelo Presidente da República Michel Temer à Câmara dos Deputados, em 23.12.2016. Inicialmente, tratava-se de projeto enxuto, envolvendo temas para os quais o Governo anunciava que tinha consenso entre as centrais sindicais1 e entidades patronais. Cogitou-se de uma medida provisória, mas o Governo recuou e apresentou o texto como projeto de lei2. Originalmente, o projeto envolvia os seguintes temas:

  1. majoração de multas por infrações administrativas de falta de registro da CTPS (CLT, art. 47) e ausência de encaminhamento de informações sociais do trabalhador (CLT, art. 47-A);

  2. alteração do regime de trabalho a tempo parcial (CLT, art. 58-A);

  3. regulamentação da eleição de trabalhadores no local de trabalho (CLT, art. 523-A);

  4. condições para a prevalência do negociado sobre o legislado (CLT, art. 611-A);

  5. atualização dos valores de multas por infração à legislação trabalhista (CLT, art. 634);

  6. contagem de prazos em dias úteis (CLT, art. 775);

  7. alteração do contrato de trabalho temporário (Lei
    n. 6.019/1974, arts. 2º, 10 a 12, 14, 18-A, 18-B e 19).

Em 9 de fevereiro de 2017, a Presidência da Câmara dos Deputados constituiu Comissão Especial para exame do PL, designando como presidente o Deputado Federal Daniel Vilela (PMDB-GO) e como relator o Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB-RN). A Comissão realizou diversas audiências públicas, ouvindo lideranças sindicais de trabalhadores e empresários, magistrados de todas as instâncias, integrantes do Ministério Público do Trabalho, advogados, professores e economistas. Em 12 de abril de 2017, o relator, Deputado Rogério Marinho, apresentou o seu parecer3.

Em síntese, o parecer do deputado Rogério Marinho revelou linhas gerais do trabalho realizado, que expandiu enormemente o escopo do projeto, revelando alguns equívocos técnicos e procedimentais, formando o caldeirão que explica a oportunidade perdida: em vez do país avançar na modernização das relações de trabalho, buscou-se, aleatoriamente, ?rmar um contraponto à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, em geral para inviabilizar alguns entendimentos favoráveis aos trabalhadores.

Em seu relatório, o deputado Rogério Marinho destacou que foram ouvidas centenas de pessoas ligadas ao mundo do trabalho e que isso garantiu um resultado amplo e democrático. Na realidade, há controvérsias. As audiências públicas não observaram um método cientí?co que pudesse tornar a medida mais proveitosa. Aliás, as imperfeições de redação da lei contrastam com vá-

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rias manifestações quali?cadas, produzidas no âmbito da Câmara dos Deputados, o que demonstra que faltou ao projeto preocupação cientí?ca — talvez adotando o procedimento de constituição de grupo de trabalho envolvendo juristas que ?cassem responsáveis pela redação ?nal, como ocorreu em outras missões legislativas relevantes, como o novo Código de Processo Civil. O resultado foi que diversos textos não correspondem ao discurso de mudança pretendida pelo legislador.

Em outro ponto, o relator destacou que a legislação estava desatualizada e que, sob o mantra da proteção, estimula o desemprego e a informalidade. No entanto, o projeto não combate a informalidade e o descumprimento inescusável da legislação trabalhista, preferindo o caminho mais cômodo de estímulo a relações jurídicas precárias, como se dá com a ampliação da terceirização (Lei n. 6.019/1974, arts. 4º-A e 5º-A), regulamentação do trabalho intermitente (CLT, arts. 443 e 452-A) e tentativa de validar contratos de trabalho autônomo, ainda que exclusivo e habitual (CLT, art. 442-B).

Em seguida, o deputado Rogério Marinho a?rma, em seu relatório, que o propósito do projeto não era retirar direitos, mas emprestar segurança jurídica aos contratantes. Verdade é que alguns direitos, especialmente enunciados na jurisprudência do TST, foram alvo de intuito nítido de supressão, a exemplo da remuneração do tempo à disposição do empregador (CLT, art. 4º), inaplicabilidade da prescrição intercorrente (CLT, art. 11-A, e Súmula n. 114 do TST), horas in itinere (CLT, art. 58, § 2º, e Súmula n. 90 do TST), proibição de banco de horas instituído no campo individual (CLT, art. 59, § 5º, e Súmula n. 85 do TST), tratamento da supressão do inter-valo intrajornada (CLT, art. 71, § 4º, e Súmula n. 437 do TST), indenização de danos extrapatrimoniais (CLT, art. 223-A e seguintes), higienização e colocação de marcas comerciais nos uniformes (CLT, art. 456-A), equiparação salarial em cadeia (CLT, art. 461, § 5º, e Súmula n. 6 do TST), incorporação de grati?cação de função após dez anos (CLT, art. 468, § 2º, e Súmula n. 372 do TST), negociação coletiva prévia às despedidas coletivas (CLT, art. 477-A), limites à prevalência do negociado sobre o legislado (CLT, arts. 611-A e 611-B) e ultratividade da norma coletiva (CLT, art. 614, § 3º, e Súmula n. 277 do TST). Por outro lado, o texto da lei, confuso em diversas passagens, não alcançará a desejada segurança jurídica pela falta de apuro cientí?co.

Outro ponto digno de nota é que o deputado Rogério Marinho analisou a litigiosidade, culpando em parte os empregadores que intencionalmente descumprem a lei, mas apontando que um grande número de ações seria pelo detalhamento exagerado das obrigações trabalhis-tas. No entanto, o texto busca reduzir alguns direitos, tenta impor risco para a demanda, com sucumbência e limitações da gratuidade da justiça, mas em nada ataca a lesão estratégica a direitos trabalhistas, conduta pela qual alguns maus empregadores descumprem a legislação de modo consciente, proposital e inescusável.

Por ?m, o relatório destaca que um dos pilares do projeto é a prevalência do negociado sobre o legislado, em respeito à autonomia coletiva da vontade. Porém, na Câmara dos Deputados a essência do modelo de negociação coletiva foi alterado: originalmente, o PL mencionava a necessidade de concessão de vantagem compensatória especí?ca para cada direito legislado a ser reduzido ou suprimido, em conformidade, inclusive, com a jurisprudência do STF, mas tal premissa foi excluída do texto pelo relator.

Aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto de lei seguiu para o Senado Federal em 28.4.2007, onde recebeu a numeração de PLC n. 38/2017. No dia 11 de julho de 2017, o projeto foi aprovado pelo Senado, após questionável procedimento, por meio do qual parlamentares, em especial o relator, Senador Ricardo Ferraço4, apontaram erros e injustiças na proposição, mas anuíram com sua aprovação, mediante compromisso do Presidente da República, Michel Temer, em editar medida provisória que permitisse alguns ajustes na lei. Na oportunidade, houve divulgação ostensiva, no sentido de que haveria correção do projeto por vetos ou por medidas provisórias, envolvendo os seguintes temas: regulamentação do trabalho intermitente; regime de compensação de 12 por 36; obrigatoriedade de participação dos sindicatos nas negociações coletivas; trabalho de empregadas grávidas e lactantes em local insalubre; prorrogação da jornada em atividade insalubre; arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial; possibilidade de contratação de autônomo com exclusividade; extinção da contribuição sindical5.

Encaminhado ao Presidente da República, o projeto foi rapidamente sancionado no dia 13 e publicado no dia 14 de julho de 2017.

3. A medida provisória n 808

Com a sanção da Lei n. 13.467/2017, criou-se forte expectativa em torno de uma possível edição de Medida Provisória, que promoveria acertos na Reforma Trabalhista, em especial, para atender demandas manifestadas pelos senadores da base aliada ao Presidente Michel Temer.

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A Medida Provisória visou alterar pontos da Reforma que foram objeto de crítica e conferir segurança jurídica na aplicação da Reforma. No entanto, as alterações promovidas foram muito amplas e geram discussões até mesmo acerca da constitucionalidade da MP, editada no dia 14 de novembro de 2017, 3 dias após o início da vigência da Lei n. 13.467/2017.

O fato de o Presidente da República esperar o início da vigência da Reforma Trabalhista para editar a Medida Provisória provoca discussão acerca do critério de urgência, tendo em vista que, como a lei não pode ser retroativa, não haveria mais urgência em alterar a lei após sua vigência. Não bastasse, a Exposição de Motivos deixou de abordar a fundamentação de relevância para temas sensíveis, como o direito intertemporal, limitando-se a mencionar que “a urgência e a relevância do conjunto das medidas apresentadas fundamentam-se a partir da necessidade de conferir segurança jurídica e dar clareza a dispositivos da modernização da legislação trabalhista, aprovados pelo Congresso Nacional e introduzidos no ordenamento jurídico pátrio pela Lei n. 13.467, de 20176.

A Medida Provisória criou uma regra de direito intertemporal, determinando a aplicação da Lei n.
13.467/2017 aos contratos de trabalho em curso. No entanto, a questão será polêmica, por induzir debate acerca do possível efeito retroativo da medida...

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