Reformulando espaços e revisitando gêneros: socializações lésbicas em um bar no Rio de Janeiro

AutorAndréa Lacombe
Páginas251-269
Niterói, v. 9, n. 1, p. 251-269, 2. sem. 2008 251
REFORMULANDO ESPAÇOS
E REVISITANDO GÊNEROS:
SOCIALIZAÇÕES LÉSBICAS
EM UM BAR NO RIO DE JANEIRO
Andréa Lacombe
Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: andrealacombe@yahoo.com.br
Resumo: Este artigo dedica-se a explicitar os
modos pelos qu ais um grupo de mulheres
que gostam de outras mulheres – entendidas,
segundo a autodenominação – se apropria de
um espaço considerado como masculino, e as
estratégias utilizadas nesta operação. Como se
configuram os grupos no bar? As seguintes
indagações constituem objeto da pre sente
análise: qual o lu gar ocupa do atual mente
pelos antigos fregueses? Quais os diferentes
níveis de inclusão e exclusão social? Que papel
desempenha a sedução, na articulação dos
grupos de freguesas? Por que elas se referem
a um “bar familiar”?
Palavras-chave: lesbianismo; estudos queer;
estudos de gênero; sociabilidade.
Este artigo centra-se no trabalho de campo1 realizado no Flôr do André, bar no
centro da cidade do Rio de Janeiro – entre os bairros de Fátima e Santa Teresa – defini-
do, por suas características socioculturais, como um botequim. Frequentado em seus
30 anos de existência quase exclusivamente por homens, há pouco mais de cinco anos
começou a albergar um público novo que, em parte, substituiu a antiga freguesia. A
nova frequência refere-se a mulheres, em sua maioria lésbicas, que cooptaram este
espaço, redimensionando as relações sociais ali construídas. Os modos de ocupação
dos espaços, as vestimentas utilizadas, os movimentos corporais, enfim, as práticas
performáticas por elas desenvolvidas se assemelham mais às masculinas, o que indica
a manutenção da característica do espaço como masculino. Cabe esclarecer que este
1 Pesquisa realizada em 2004, que deu origem a minha dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ, sob orientação do professor Otávio Velho.
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Reformulando espaços e revisitando gêneros:
socializações lésbicas em um bar no Rio de Janeiro
bar não é classificado pelas freguesas como local GLS.2 Elas recusaram explicitamente
o uso desta locução para definir o espaço, estabelecendo uma distinção entre “boate
gls” e “bar familiar”, forma de qualificação do Flôr do André.
Por dentro e por fora do Flôr do André
A organização espacial do bar apresenta características específicas, de acordo
com o horário e com o dia da semana. Tais especificidades enquadram-se no padrão
descrito por Machado da Silva, acerca dos chamados botequins3 cariocas. Segundo
este autor (1969, p. 160-182), o botequim é uma instituição frequentada por homens
trabalhadores de camadas populares, geralmente localizado próximo à entrada de
favelas ou em regiões de baixa renda da cidade. Por outro lado, a duração e a inten-
sidade de permanência no local são marcantes: possui freguesia fixa – “A assiduidade
dos fregueses é de tal ordem, que em muitos casos o botequim depende dele para
sobreviver” (MACHADO, 1969, p. 163).
Durante o dia, a atividade se reduz a seu interior: as pessoas permanecem nos
bancos altos do balcão ou nas quatro mesas que o contornam. Geralmente cada
mesa é ocupada por duas pessoas: uma de cada lado, apoiando a cadeira contra a
parede e de frente para o balcão, como se este fosse um palco e Nilda – a atenden-
te – a atriz da peça. O mesmo se dá em relação aos bancos: primeiro são ocupados
aqueles ao lado da entrada e, posteriormente, os localizados em frente às mesas,
com a precaução de se ficar de lado, para não dar as costas à garçonete ou para os
que estão nas mesas. A distribuição parece sempre preparada para dar lugar a um
diálogo, ainda que não ocorra qualquer conversa.
As condições climáticas não influenciam a frequência: tanto em dias frios e chu-
vosos quanto nos quentes e ensolarados as pessoas buscam aquele lugar. Entretanto,
a diferença se estabelece à noite, já que, nas mais amenas, as pessoas buscam mais
as mesas da calçada do que as situadas no interior do bar, e a estada se prolonga
até mais tarde da noite, até mesmo nos dias úteis. Durante a noite, o Flôr do André
2 Sigla utilizada no Brasil para identificar lugares específicos de socialização de gays e lésbicas; a letra S corresponde a
“simpatizantes”, como forma de expressar a abertura a pessoas que, apesar de não praticarem atividades homoeróti-
cas, frequentam tais espaços. A sigla também é usada por gays e lésbicas, como maneira de autodefinição. Os grupos
de ativismo se referem à sigla GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e travestis), por considerá-la politicamente correta, pois
inclui outras minorias, além dos gays e lésbicas. Os transexuais, transgêneros e intersexes não são incluídos nesta úl-
tima sigla, embora sejam reconhecidos pelo ativismo internacional como integrantes da causa em defesa dos direitos
das diferenças sexuais.
3 Cabe mencionar que o artigo de Machado da Silva data de 1968. Na atualidade, a noção de botequim tem mudado,
a ponto de certos espaços denominados de botequim apresentarem um ambiente mais requintado, com amplo cardá-
pio de petiscos e bebidas, muito distinto da descrição deste autor. Por outro lado, o vocábulo “boteco” ou “botequim”
é mais utilizado por pessoas de camadas médias – que às vezes frequentam bares mais populares – do que no léxico
daqueles que frequentam cotidianamente este tipo de estabelecimento. Como estrangeira, por exemplo, conheci o
termo boteco por meio de colegas do curso de pós-graduação, e não no discurso dos habitués do Flôr do André. A
existência de um guia dos melhores botequins do Rio – já na sexta edição –, difundido em livrarias da Zona Sul do Rio
de Janeiro, funciona também como indicador da mudança no sentido da palavra.

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