O regime jurídico das licitações no Brasil e o Mercosul

AutorProf. César A. Guimarães Pereira
CargoMestre e Doutorando em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em Curitiba
Páginas1-18

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I - Introdução
  1. Dentro do tema geral do Congresso1, esta exposição tratará da seleção de particulares a ser contratados pela Administração Pública.

    Parece-me que este tópico é oportuno, de um lado, porque se refere a um ponto de afirmação do regime jurídico de direito público em relação aos contratos da Administração Pública. Mesmo os ditos contratos privados da Administração submetem-se, quanto à sua formação, ao regime de direito público.

    De outro, trata-se de tema objeto de preocupação específica por parte dos órgãos setoriais do Mercosul. Discute-se atualmente, no âmbito de um grupo de trabalho vinculado ao Grupo Mercado Comum, o teor de um protocolo comum para o regime jurídico das compras governamentais, o que envolverá uma definição sobre o procedimento licitatório (ou seja, sobre a seleção de contratados).

  2. A seleção de contratados é um tópico da atuação contratual do Estado que, a meu ver, afirma a existência de um plexo de princípios e normas Page 2 peculiares, não aplicáveis às relações privadas e que caracterizam um regime jurídico próprio das contratações da Administração.

    Esse tópico foi excelentemente exposto pelo professor boliviano JUAN ALBERTO MARTÍNEZ, em exposição anterior neste mesmo Congresso. Segundo MARTÍNEZ, a interferência de um aspecto privado no regime licitatório não se deve dar através da sujeição total ou parcial das compras governamentais a um regime de direito privado mas de uma integração maior entre o Poder Público e o setor privado da economia (por exemplo, através da participação dos agentes privados na elaboração de modelos de atos convocatórios de licitação).

  3. Esse mesmo aspecto pode traduzir-se, no Brasil, através de iniciativas ligadas a orçamentos participativos - em que os particulares passam a exercitar atividades concretas na definição e acompanhamento das prioridades de dispêndios da Administração, inclusive, portanto, nas compras governamentais.

    Em termos jurídicos, há a consagração, no Brasil, de participação privada na definição da oportunidade e no objeto de licitações em uma variedade de situações. De modo amplo, o art. 39 da Lei de Licitações (Lei nº 8.666, de 1993) prevê a realização de audiências públicas previamente à realização de licitações de grande porte (de valor superior, hoje, a cerca de US$75 milhões2). É prevista de forma abrangente a fiscalização do particular interessado sobre o procedimento licitatório, podendo haver impugnação do ato convocatório (art. 41, § 1º, da Lei de Licitações) e amplo acesso a informações e a acompanhamento da licitação (art. 4º da Lei de Licitações).

  4. Portanto, nessa matéria em particular, a inserção de um regime jurídico dito de direito privado ocorre primordialmente através da exclusão de certas atividades do âmbito de atuação do Estado.

    4.1. Assiste-se hoje, não apenas no Brasil, a uma intensa transferência de setores atendidos pelo Poder Público para a exploração privada, seja através de privatização de empresas e de atividades propriamente dita, seja através da outorga de concessões ou permissões.

    As contratações realizadas pelas entidades privatizadas ou pelos concessionários não se submetem ao regime de direito público, nem mesmo quanto à exigência de licitação. Isso retira do campo de incidência dessas regras uma quantidade relevante de situações.

    4.2. Além disso, há a consagração de figuras jurídicas novas - como as chamadas "organizações sociais" no Brasil3 - que pretendem promover a Page 3 atuação privada de interesse público. Embora possam receber, em certos casos, recursos públicos, essas entidades não se submetem a licitação em suas contratações.

    A doutrina brasileira4 vem-se ocupando de estabelecer limites rígidos para a atuação dessas entidades, de forma a evitar que se transformem em uma fraude destinada a suprimir os controles sobre as atividades próprias do Poder Público5.

  5. Ainda assim, os contratos firmados pela Administração Pública mantêm sua relevância na economia dos nossos países. Os dispêndios da Administração são extremamente significativos. Mesmo se não o fossem, permaneceria necessário manter o rigor na seleção dos particulares a ser beneficiados pelo direito de contratar com o Estado.

    Nesse ponto específico, portanto, não há interferência relevante do direito privado sobre o direito público. O regime jurídico da seleção de contratados pelo Estado é rigorosamente público. Mesmo nos casos em que a licitação é legalmente dispensável em face do valor reduzido da contratação, a escolha do contratante

  6. Esta exposição pretende transmitir uma visão ampla do sistema de seleção de contratados hoje vigente no Brasil, o que permitirá uma reflexão sobre o caminho a ser percorrido para uma harmonização de regimes nessa área.

    Note-se que nenhuma das propostas até agora desenvolvidas no Mercosul alude à necessidade de uniformização legislativa. Defende-se apenas a definição de pontos comuns e, principalmente, o tratamento não discriminatório e até mesmo preferencial em relação aos produtos oriundos dos demais Estados-Membros.

    A questão, portanto, será definir em que medida será necessário algum ajuste na legislação nacional de cada Estado-Membro para que se possam realizar os objetivos fundamentais da harmonização de regimes.

II - O regime constitucional das licitações no Brasil
  1. A compreensão do regime brasileiro acerca da seleção de contratados Page 4 pelo Poder Público deve partir de dois pontos fundamentais.

    7.1. O primeiro é o de que o Brasil é uma federação, e uma federação peculiar.

    Como em qualquer outra, há competências normativas do ente central (União) e dos entes locais (Estados e Distrito Federal). Isso nos exige, desde logo, buscar na Constituição Federal as regras sobre a partilha de competências entre a União, de um lado, e os Estados-Membros e o Distrito Federal, de outro.

    Porém, a Constituição Federal alude a que a federação brasileira é também integrada pelos Municípios, aos quais a Constituição atribui autonomia e competências legislativas próprias.

    Portanto, as regras acerca da seleção de contratados - que são diretamente vinculadas à autonomia administrativa de cada ente político - podem ser produzidas, em certa medida, não apenas pela União mas também por Estados, Distrito Federal e Municípios.

    7.2. Essa competência normativa dos entes políticos seria apta a ocasionar uma grande dificuldade de conhecimento das regras vigentes, não fosse o regime constitucional específico das licitações no Brasil - e aqui nós estamos no segundo ponto de partida para a investigação do tema.

    A Constituição brasileira, vigente desde 1988 e emendada, neste tópico específico, em 1998, estabelece princípios e regras significativos sobre a abrangência e a disciplina das licitações.

    7.2.1. O art. 22, XXVII, da Constituição, determina que compete privativamente à União legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III".

    Disso deriva, desde logo, que a competência normativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios neste campo é muito menor do que se poderia supor em um exame inicial. As normas gerais são definidas privativamente pela União e são vinculantes para os demais entes. As competências locais são restritas às peculiaridades não disciplinadas nas normas gerais.

    Assim, a relevância da legislação local para o regime das licitações no Brasil é secundária.

    A competência para a edição de normas gerais vem sendo exercitada há longo tempo pela União. Houve uma sucessão de textos legislativos, que culminou, em 1993, com a edição da atual Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93). A União exercitou essa sua competência também em textos legislativos esparsos. Os mais significativos são a Lei de Concessões, de 1993 (Lei nº 8.987/95 e Lei nº 9.074/95), e a Medida Provisória Page 5 nº 2.0266, de junho de 2000, que instituiu uma nova modalidade licitatória.

    7.2.2. O conteúdo fundamental do regime licitatório no Brasil é dado pelo art. 37, inciso XXI, da Constituição, cuja redação é a seguinte: "Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, a qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações".

    Como se percebe, esse dispositivo contém uma variedade de determinações acerca do conteúdo da disciplina das licitações.

    Desde logo, define que, em geral, as contratações públicas são submetidas a um requisito prévio consistente na realização de licitação. Somente não será realizada licitação nos casos ressalvados na lei. Essa é uma condição de validade dos contratos da Administração no Brasil: serão precedidos sempre de licitação ou de ato formal que reconheça o enquadramento do caso em uma das situações ressalvadas na lei.

    Estabelece, além disso, um princípio que está na base da compreensão do regime licitatório no Brasil: a igualdade de condições entre os concorrentes. Em atenção a esse princípio, a legislação infraconstitucional brasileira ocupase de disciplinar minuciosamente o procedimento licitatório, com o objetivo de que todos os licitantes tenham condições de definir de modo...

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