O regime jurídico da multa isolada sobre estimativas

AutorMarcos Vinicius Neder
CargoPresidente da Sétima Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes Professor dos cursos de especialização da FGV, IBET, PUC (COGEAE) e da UNB
1. A temática do problema

A Medida Provisória n.º 351, de 22 de janeiro de 20071, introduziu importantes alterações na norma sancionatória que pune a falta de recolhimento de antecipações mensais para contribuintes optantes pelo regime de apuração do lucro real de forma anual. No seu art. 14, buscou-se adequar a exigência de multa isolada à exegese jurisprudencial consolidada, notadamente com relação ao entendimento consagrado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais no sentido de sua inaplicabilidade quando o valor calculado de forma estimada superar o tributo devido apurado ao final do exercício.

Com efeito, essa penalidade foi originalmente introduzida pelo art. 44 da Lei nº 9.430, de 1996, e, durante o tempo de sua vigência, inúmeras dúvidas surgiram no tocante a sua interpretação e aplicação, eis que não são poucos os que entendem que a aplicação dessas penalidades poderia ser feita sobre a antecipação mensal não recolhida sem considerar o tributo efetivamente devido no encerramento do exercício financeiro em 31 de dezembro.

Assim era a redação original do dispositivo em questão:

Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas, calculadas sobre a totalidade ou diferença de tributo ou contribuição:

I - de setenta e cinco por cento, nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, pagamento ou recolhimento após o vencimento do prazo, sem o acréscimo de multa moratória, de falta de declaração e nos de declaração inexata, excetuada a hipótese do inciso seguinte; (...)

§1º As multas de que trata este artigo serão exigidas:

(...)

IV - isoladamente, no caso de pessoa jurídica sujeita ao pagamento do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, na forma do art. 2º, que deixar de fazê-lo, ainda que tenha apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no anocalendário correspondente.2

Como se sabe, por opção da pessoa jurídica3, o imposto sobre a renda pode ser apurado anualmente desde que seja antecipado o imposto a cada mês com base em cálculo estimativo. Nessa hipótese, o período-base de incidência do imposto só se encerra efetivamente ao final de cada ano-calendário, quando é apurado o imposto no balanço fiscal e feita a compensação do valor pago mensalmente. Se o saldo apurado é devedor, será complementado pelo contribuinte nos meses seguintes ao encerramento do exercício.

Ocorre que é possível o contribuinte esteja obrigado aos recolhimentos de estimativas ao longo do ano, mas o resultado ao final do exercício ser negativo, apurando a pessoa jurídica prejuízo fiscal, por exemplo. Tais recolhimentos efetuados a título de antecipação do imposto tornam-se indevidos e passíveis de restituição ou compensação com débitos de períodos seguintes.

Daí surge a questão que analisaremos nesse estudo: o citado artigo 44, em sua redação original, determinava a aplicação de multa isolada por falta de recolhimento da estimativa mesmo quando a empresa apurar prejuízo no encerramento do exercício?

2. Conceitos relevantes sobre a tributação das pessoas jurídicas pelo Lucro Real

Tradicionalmente, o período-base de incidência do imposto sobre a renda nas pessoas jurídicas sempre foi anual. Mas, em razão da conjuntura econômica e da necessidade de antecipação dos ingressos de numerários nos cofres públicos, depauperados pela inflação elevada no início da década de 90, foi introduzido pela Lei nº 8.383, de 1991, o imposto em bases correntes, reduzindo o período de incidência para bases mensais. Essa sistemática permaneceu, em linhas gerais, inalterada até a edição da Lei nº 9.430, de 1996, que ampliou os períodos base de incidência para trimestrais.

Ocorre, porém, que, desde a Lei nº 8.542, de 1992, as normas que tratam da apuração do lucro real, introduziram, alternativamente, a apuração anual do imposto, desde que fosse mensalmente pago o imposto com base em estimativa. Assim, a pessoa jurídica sujeita à tributação com base no lucro real poderia apurar o imposto de renda com base no lucro real, determinado por períodos de apuração trimestrais, coincidentes com os trimestres civis, ou poderia, opcionalmente, pagar o imposto de renda mensalmente, determinado sobre base de cálculo estimada. Nessa hipótese, deve fazer a apuração anual do lucro real em 31 de dezembro de cada ano-calendário.

Segundo lembra Noé Wrinkler, "o critério de estimativa, para feitos arrecadacionais em bases correntes, veio a ser mais adequado à sua designação, em 1992, pela Lei nº 8.541, cuja base de aferição do lucro estimado, provisório, para pagamento mensal do imposto, passou a ter, como parâmetro, percentuais em função da natureza da atividade de empresa e composição de sua receita bruta".4

A base eleita para o cálculo da estimativa mensal é próxima ao valor que seria pago no regime de apuração com base no lucro presumido e representa o montante determinado pela aplicação dos percentuais fixados na lei, variáveis conforme o tipo de atividade explorada, sobre a receita bruta auferida mensalmente, acrescidos de ganhos de capital e de outros resultados positivos decorrentes de receitas não compreendidas na atividade.

Cabe, ainda, observar que o parágrafo 2º do art. 39 da Lei n.º 8.383, de 1991, autoriza a interrupção ou diminuição dos pagamentos por antecipação quando o contribuinte demonstra, mediante balanços ou balancetes mensais, que o valor já pago da estimativa acumulada excede o valor do tributo calculado com base no lucro ajustado do período em curso. Daí, mesmo que o contribuinte efetivamente não deva tributo no exercício e, por conseqüência, também não deva pagar estimativa (antecipação), a norma prevê a obrigatoriedade da demonstração dessa situação ao agente fiscal mediante balanços ou balancetes transcritos no Livro Diário da empresa.

Se o saldo do imposto apurado em 31 de dezembro do ano calendário, obtido do confronto entre o valor do imposto devido com base no lucro real anual e das estimativas pagas no decorrer do período, for negativo, o valor pago excedente pode ser compensado com o imposto de renda devido a partir do mês de janeiro do ano-calendário subseqüente ao do encerramento do período de apuração, assegurada a alternativa de requerer a restituição atualizada pelos juros equivalentes à taxa Selic.

3. Sanção em face dos princípios da legalidade e da proporcionalidade

O direito positivo sancionador possui um caráter eminentemente instrumental na medida em que seu fim é a regulação das condutas interpessoais, e o faz na medida em que prescreve comportamentos como obrigatórios, facultativos e/ou proibidos. No dizer de Kelsen, "sanções (...) são estatuídas por uma ordem normativa para garantir a eficácia dessa ordem". E prossegue: "A eficácia de uma ordem jurídica - segundo opinião usual - consiste em que suas normas impõem uma conduta determinada, e efetivamente são observadas, e quando não cumpridas são aplicadas".5

A sanção é, portanto, um instrumento para alcançar determinada finalidade de interesse público, mas a aferição do objetivo visado pela ordem jurídica ao instituir determinado dever nem sempre é tarefa fácil. A questão repousa na identificação do que se reputará como interesse público no caso concreto. No dizer de Marçal Justen Filho, não há qualquer caráter predeterminado apto a qualificar o interesse como público. Sustenta que "o processo de democratização conduz à necessidade de verificar, em cada oportunidade, como se configura o interesse público, Sempre e em todos os casos, tal se dá por meio da intangibilidade dos valores relacionados aos direitos fundamentais".6

Cumpre observar, nesse sentido, que a aplicação de sanção interfere na esfera juridicamente protegida do cidadão-contribuinte, impondo restrições a sua esfera patrimonial, por isso o rigor na sua aplicação é maior. Em se tratando de normas sancionadoras, não é possível a interpretação que privilegie apenas a finalidade sem se preocupar com o sentido mínimo do texto, de forma a estender a punição além das hipóteses figuradas na lei. Além da obediência genérica ao princípio da legalidade, devem também atender a exigência de objetividade, identificando com clareza e precisão, os elementos definidores da conduta delituosa.

Para que seja tida como infração, a ocorrência da vida real, descrita no suposto da norma individual e concreta expedida pelo órgão competente, tem de satisfazer a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese da norma geral e abstrata. A insegurança, sobretudo no campo de aplicação de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT