A licitação é regra ou exceção: repensando a contratação direta

AutorProf. Renato Geraldo Mendes
CargoCoordenador-Geral do ILC e da Consultoria Zênite. Advogado e Consultor Jurídico.
Páginas1-20

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1. Considerações iniciais

Neste trabalho, iremos tratar de várias questões envolvendo o tema contratação direta sem licitação. A abordagem do tema será feita de forma a possibilitar uma análise atual e inovadora em relação à temática indicada. De um modo geral, a doutrina especializada não tem se dedicado a analisar determinadas facetas relacionadas com a dispensa e inexigência. Da mesma forma, pode-se dizer que a disciplina dada à matéria, na Lei nº 8.666/93, revela um certo descaso com a contratação direta, pois o legislador limitou-se a fixar as hipóteses de exclusão do dever de licitar e a traçar regra superficial sobre a formalização do processo.

Isso até seria justificável se a contratação direta fosse uma prática pouco utilizada no âmbito da Administração Pública; mas, conforme veremos abaixo, os montantes gastos com dispensa e inexigência no âmbito da União são superiores aos realizados com licitações. Essa constatação, por si só, sugere duas coisas: a) a violação da ordem constitucional, pois a licitação é um dever que se impõe como regra, e b) a necessidade de se repensar o regime jurídico da contratação pública, tal como previsto na Lei nº 8.666/93.

Além das questões indicadas acima, avaliaremos outros aspectos que se revelam, numa visão sistemática, de fundamental importância. Tais questões dizem respeito aos princípios que regem o regime específico da contratação direta e a necessidade ou não de proceder-se à habilitação dos interessados quando o procedimento pré-contratual assenta-se em hipótese de dispensa e inexigibilidade. Page 2

Conforme veremos abaixo, os dados indicados no item 3 são suficientes para ensejar a configuração de um novo regime jurídico em relação à contratação direta. Aliás, muito diferente do que consta dos arts. 17, 24 e 25 da Lei nº 8.666.

É preciso, notadamente em face dos dados revelados e da realidade que atinge não só a esfera federal, mas também as outras, redesenhar uma nova ordem infraconstitucional que respeite e garanta a licitação como regra. Para tanto, é indispensável reavaliar todas as hipóteses de dispensa e inexigibilidade, fixar os princípios que devem nortear a contratação direta, estabelecer regras quanto ao procedimento e à formalização do processo. Quando se fala em procedimento, estamos nos referindo aos atos e condutas que devem ser observados, o que não implica burocratizar o que deve ser simples, mas garantir transparência e viabilizar uma seqüência procedimental mínima indispensável à boa gestão dos recursos públicos.

2. Qual é o perfil constitucional da licitação

A licitação, como realidade jurídica, tem um perfil constitucional. Dizer que a licitação tem um perfil constitucional significa que, como instituto jurídico, os seus traços e contornos estão fixados na Lei Maior. O traço mais importante da licitação, à luz da Constituição, é o de representar um dever (ou um dever que emana de um princípio e com ele se confunde).

Como dever, a licitação tem um sentido vinculante e de regra. O que caracteriza uma regra é a sua predominância sobre outro modo de agir. A regra da licitação é uma regra de ação, de ação preponderante. Ao configurar o dever, o constituinte foi claro e não deixou dúvidas em relação ao que desejava. A validade do contrato, como instituto jurídico, está diretamente relacionada ao cumprimento de um dever. Um dever que não pode ser afastado, quer pela atividade legislativa, quer pela administrativa. Trata-se de um dever fundamental que só pode ser afastado quando a sua adoção, de forma justificada, efetiva ou potencialmente, puder causar prejuízo ao interesse público. Essa foi a idéia que norteou a arquitetura da licitação, enquanto instituto constitucional.

Se a licitação é um dever, esse dever é absoluto ou relativo?

2.1. O que é licitação?

A licitação é um procedimento administrativo que se traduz em uma série de atos que obedecem a uma seqüência determinada pela Lei e tem por finalidade a seleção de uma proposta, de acordo com as condições previamente fixadas e divulgadas, em razão da necessidade de celebrar uma relação contratual. A licitação, assim, tem uma finalidade imediata e outra mediata. A imediata é a seleção de uma proposta vantajosa, segundo Page 3 condições prévias e objetivamente fixadas. A mediata é a celebração de um contrato.

Quando se deflagra a licitação, o que se busca é a concretização da finalidade imediata e da mediata. Entretanto, em muitos casos isso não ocorre, pois em certas situações a licitação cumpre a sua finalidade imediata, sem que se realize a mediata. Tal ocorre quando, embora se tenha selecionado a melhor proposta, o contrato não se efetiva. As razões que podem ensejar a não-concretização do contrato são inúmeras.

Na precisa definição de Celso Antônio Bandeira de Mello, licitação "é o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras e serviços, outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados".

2.2. O dever de licitar é a regra ou a regra é a contratação direta?

Qualquer análise jurídica tem de partir, necessariamente, da Constituição da República. Pouco importa se o problema jurídico a ser resolvido é simples ou possui complexidade, é pelo texto constitucional que se deve iniciar toda e qualquer análise de cunho jurídico. Assim, é preciso saber, à luz do texto constitucional, se a licitação foi imposta como regra ou como exceção. Embora a questão já tenha sido tratada acima, é imperioso aprofundar alguns aspectos mais precisos.

O inciso XXI do art. 37 da Constituição diz que: "ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações".

Com base no preceito indicado, o que quis, afinal, dizer o legislador? Qual foi a regra por ele fixada? A regra é licitar ou é realizar contratação direta?

Em matéria de licitação, é possível dizer que a doutrina diverge em vários pontos. Entretanto, existe uma unanimidade em torno de ser a licitação a regra. Ignoro que alguém tenha escrito, ainda que por equívoco, que a regra seja a contratação direta. A unanimidade doutrinária em relação ao reconhecimento de ser a licitação a regra afastaria, em princípio, a discussão em torno do assunto. Defender o contrário é professar tese solitária. Então, por que discutir neste trabalho a questão de ser ou não a licitação a regra? Page 4

Se há indagação, há dúvida. Mas qual seria o motivo da eventual dúvida? A primeira impressão que ocorre é que a dúvida residiria apenas no autor do texto, pois ele mesmo admite que a doutrina vê a questão de forma pacífica. É evidente que não é esse o problema. Afirmo, desde logo, que não tenho nenhuma dúvida quanto ao fato de ser a licitação a regra. Se essa não é a dúvida, por que a indagação inicial? A resposta é simples: são os números divulgados pelo próprio Governo Federal. Os números ou os dados, oficialmente divulgados, revelam algo bastante sério e que precisa ser avaliado. Os referidos dados foram utilizados num texto de autoria da Dra. Renata Vilhena, Secretária-Adjunta de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, sobre a modalidade pregão.1

É conveniente que se diga que a pesquisa que será feita tem o condão de analisar a questão sob o ponto de vista, exclusivamente, jurídico. Não se trata de nenhuma crítica ao próprio Governo, até porque os dados, embora pertinentes à Administração federal, refletem a situação das outras esferas de Governo. Em muitas delas, principalmente municípios, a situação é ainda mais séria. A diferença é que a Administração federal produz dados estatísticos e os divulga, o que é elogiável, e as demais esferas não os produzem e, se os produzem, não os divulgam, o que é lamentável.

2.3. Que dever consubstancia a licitação?

O Estado tem necessidades, como toda e qualquer pessoa. Para satisfazer as suas necessidades o Poder Público dispõe de duas formas básicas: a) reunir todos os recursos humanos, materiais, instrumentais, tecnológicos, etc., e realizar ele mesmo o que deseja (obra, serviço ou produção de bens), ou b) contratar um particular para realizar ou fornecer o que necessita. Na primeira hipótese, diz-se que a execução é direta; na segunda, a execução é dita indireta. É indireta porque o interesse público é satisfeito através de um particular, já que a Administração não dispõe de pessoas e meios materiais para executar a obra, o serviço ou fabricar o bem que deseja.

A seleção desse particular é livre? Em outras palavras, a autoridade administrativa tem liberdade para escolher...

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