A relação do direito com a hermenêutica ontológico-existencial

AutorCleyson de Moraes Mello
Ocupação do AutorProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professor do PPGD da UERJ e da UVA; Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença; Membro do IAB
Páginas137-192
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A relação do direito com a hermenêutica
ontológico-existencial
Neste capítulo, pretende-se apresentar a possibilidade
de uma visão interdisciplinar entre a Filosofia e a Ciência
do Direito. Qual a relação da ontologia fundamental com a
hermenêutica? A hermenêutica com o ponto de partida na
ontologia fundamental é a hermenêutica transformada em
interpretação do próprio ser-aí, funcionalizadas a partir das
estruturas básicas da possibilidade do Dasein, ou seja, um
desvelamento das possibilidades que o ser tem de existir
(Aletheia).311
A compreensão é, dessa forma, ontologicamente funda-
mental e anterior a qualquer ato de existência, haja vista
que não podemos compreender e pensar o ser metafisica-
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311 Segundo Richard E. Palmer, a hermenêutica em Scheleirmacher tinha
procurado um fundamento nas condições comuns a todo o diálogo, e Dilt-
hey tentara tornar a compreensão como um dos poderes do homem, um po-
der pelo qual a vida encontra a vida. Contudo, a compreensão em Dilthey
não era universal; agradava-lhe a ideia de uma compreensão “histórica” sepa-
rada de uma compreensão científica. Heidegger dá o impulso final e define
a essência da hermenêutica como o poder ontológico de compreender e in-
terpretar, o poder que torna possível a revelação do ser das coisas e em últi-
ma instância das potencialidades do próprio ser do Dasein.
Dizendo de outro modo: a hermenêutica ainda é a teoria da compreen-
são, mas a compreensão é definida para Heidegger de um modo diferente
(ontologicamente). PALMER, E. Richard. Hermenêutica. Tradução Maria
Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 135.
mente como simples-presença e esquecimento. O ser deve
ser compreendido a partir do homem em seu próprio acon-
tecer, historicamente situado.
Heidegger reivindica a necessidade de uma ontologia
fundamental, que possui como tema a pre-sença,312 isto é,
um ente dotado de privilégio ôntico-ontológico. A ontolo-
gia funda-mental coloca-se diante de um problema cardeal,
qual seja, a questão sobre o sentido do ser em geral.
Da própria investigação resulta que o sentido metódico da
descrição fenomenológica é interpretação. [...] Fenomenolo-
gia da pre-sença é hermenêutica no sentido originário da pa-
lavra em que se designa o ofício de interpretar. Na medida,
porém, em que se desvendam o sentido do ser e as estruturas
fundamentais da pre-sença em geral, abre-se o horizonte
para qualquer investigação ontológica ulterior dos entes não
dotados do caráter da pre-sença. A hermenêutica da pre-
sença torna-se também uma “hermenêutica” no sentido de
elaboração das condições de possibilidade de toda investiga-
ção ontológica. E, por fim, visto que a pre-sença, enquanto
ente na possibilidade da existência, possui um primado onto-
lógico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica da pre-
sença como interpretação ontológica de si mesma adquire
um terceiro sentido específico – sentido primário do ponto
Cleyson de Moraes Mello
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312 Na obra Ser e Tempo de Heidegger publicada, pela Editora Vozes, PRE-
SENÇA = DASEIN não é sinônimo de existência e nem de homem. A pa-
lavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e Tempo traduz-
se, em geral, para as línguas neolatinas pela expressão “ser-aí”, être-là, esser-
ci, etc. Pre-sença não é sinônimo nem de homem, nem de ser humano, nem
de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo
de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-
sença que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua his-
tória, etc. (cf. entrevista de Heidegger ao Der Spiegel, Ver. Tempo Brasilei-
ro, n.50, jul/set. 1977). Notas Explicativas do tradutor em HEIDEGGER,
op. cit., 2002e. p. 309.
de vista filosófico – a saber, o sentido de uma analítica da
existencialidade da existência. Trata-se de uma hermenêuti-
ca que elabora ontologicamente a historicidade da pre-sença
como condição ôntica de possibilidade da história fatual.313
Abre-se, assim, um campo de ação em que a compreen-
são é ontologicamente fundamental e antecede qualquer
ato de existência. A compreensão sustenta a interpretação;
é contemporânea de nossa existência e está presente em
todo ato de interpretar, cuja essência está unida por víncu-
los fortes às potencialidades concretas do ser, no horizonte
da situação que cada um ocupa no mundo. Daí dizer-se
que, em Heidegger, a compreensão se tornou ontológica.
Para Heidegger, a faticidade da vida, o ser-no-mundo, o
mundo da vida, é o ponto de partida necessário para sua in-
vestigação.314 A hermenêutica com viés da ontologia funda-
mental procura interrogar o ser através da historicidade e
temporalidade do ser-aí, ou seja, compreender a questão
do ser fora do contexto da tradição metafísica. Deste
modo, ela é contra toda a tradição transcendentalista e sub-
jetivista da metafísica ocidental. O mundo da faticidade do
ser-aí seria, então, elemento norteador no sentido de impe-
dir a redução de tudo à subjetividade ou a um caminho que
propunha transformar tudo em “objeto”.315
Hermenêutica e Direito
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313 Ibid., p. 68-69.
314 Ibid.
315 Emmanuel Carneiro Leão, na introdução da obra Sobre o Humanismo,
de Martin Heidegger, esclarece que “A época da Técnica e da Ciência se es-
sencializa numa ‘época’ em que o Ser como o Ser é nada, por se destinar tan-
to na objetividade do ente como na subjetividade do homem. O homem só
é homem quando realiza sua humanidade como o ‘sujeito’ da objetividade.
A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabele-
cida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for ‘subjetivida-
de’. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como

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