"Relatividade" da competência discricionária

AutorProf. Celso Antônio Bandeira de Mello
CargoTitular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo
Páginas1-10

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  1. Ainda que sejam correntes as expressões "ato vinculado" e "ato discricionário", em rigor, vinculação ou discricionariedade são predicados atinentes aos condicionantes da válida expedição do ato ou ao seu próprio conteúdo. Querem significar, respectivamente, que o agente administrativo está, no que concerne a quaisquer destes aspectos, previamente manietado de maneira estrita pela lei ou que, pelo contrário, por força da dicção normativa que lhe regula a conduta, disporá, em relação a algum ou alguns deles, de certa liberdade para decidir, no caso concreto, sobre o modo de atender com a máxima perfeição possível o interesse público entregue a seu encargo.

    Quer-se dizer: não é o ato que é vinculado ou discricionário; tanto que se costuma afirmar que tais ou quais "elementos" dele são sempre vinculados. Donde, por imperativo lógico, o ato, em si mesmo, nunca o seria, como bem observou VITOR NUNES LEAL (Comentário à acórdão "in" RDA, vol. XIV, pags. 53 e sgs. - out-dez de 1948). Em verdade, discricionária é a apreciação a ser feita pela autoridade quanto aos aspectos tais ou quais e vinculada é sua situação em relação a tudo aquilo que se possa considerar já resoluto na lei e, pois, excludente de interferência de critérios da Administração.

    Em obra monográfica sobre o tema deixamos averbado que:

    " ... embora seja comum falar-se em ‘ato discricionário’, a expressão deve ser recebida apenas como uma maneira elíptica de dizer ‘ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou compõem’. Com efeito, o que é discricionária é a competência do agente quanto ao aspecto ou aspectos tais ou quais, conforme se viu. O ato será apenas o ‘produto’ do exercício dela. Então, a discrição não está no ato, não é uma qualidade dele; logo, não é ele que é discricionário, embora seja nele (ou em sua omissão) que ela haverá de se revelar" (Discricionariedade e Controle Jurisdicional - Malheiros Editores, 1992, pag. 18).Page 2

  2. É a falta desta necessária precisão conceitual o que leva a inúmeras e desnecessárias confusões provocadas pela simplificada linguagem vertida na fórmula "ato discricionário" e "ato vinculado". Com efeito, através dela desperta-se a enganosa sugestão de que existe uma radical antítese entre atos de uma ou de outra destas supostas categorias antagônicas. Não é o que ocorre, entretanto, pois a discricionariedade não é atributo de ato algum. É apenas a possibilidade - aberta pela dicção legalde que o agente qualificado para produzi-lo disponha de uma "certa" (ou "relativa") margem de liberdade, seja para avaliar se efetivamente ocorreram (a) os pressupostos (isto é, motivos) que legalmente o ensejariam, seja para (b) produzi-lo ou abster-se, seja (c) para eleger seu conteúdo (conceder ou negar, expedir o ato "x ou "y"), seja (d) para resolver sobre o momento oportuno de fazê-lo, seja (e) para revesti-lo com a forma tal ou qual. E tudo isto na medida, extensão e modalidades que resultem da norma jurídica habilitante e, ademais, apenas quando comportado pela situação concreta que lhe esteja anteposta.

    Assim, é visível que a noção de discricionariedade não é predicável de um ato propriamente dito, mas da competência que o agente disporá, "in concreto", para proceder a uma avaliação concernente às condições de sua expedição ou conteúdo.

  3. É visível, outrossim, que a discricionariedade é sempre e inevitavelmente relativa. E é relativa em diversos sentidos. Veja-se:

    É relativa no sentido de que, em todo e qualquer caso, o administrador estará sempre cingido - não importa se mais ou menos estritamente - ao que haja sido disposto em lei, já que discrição supõe comportamento "intra legem" e não "extra legem". Neste sentido pode-se dizer que o administrador se encontra sempre e sempre "vinculado" aos ditames legais.

  4. É relativa no sentido de que, seja qual for o âmbito de liberdade conferido, só dirá respeito àqueles tópicos que a lei haja remetido à apreciação do administrador e não a outros tópicos concernentes ao ato, mas sobre os quais a norma já haja resolvido de maneira a não deixar margem para interferência do agente. Assim, "exempli gratia", se a norma disser que a Administração "poderá conferir um prêmio de tantos reais ao funcionário que contar com 40 anos de serviço sem nenhuma falta e sem haver sofrido sanção disciplinar alguma", o agente disporá de certa liberdade para expedir ou não o ato atributivo do prêmio, mas não disporá de liberdade nem quanto ao conteúdo dele (a outorga do número de reais fixado em lei), nemPage 3 quanto aos pressupostos ensejadores do ato, isto é, seus motivos (o tempo de serviço fixado e a ausência de faltas e sanções). De outro lado, se a lei estatuir que a Administração "deverá atribuir um prêmio de tantos reais ao funcionário que no ano de 1996 haja desenvolvido a atividade mais relevante para o serviço público", o agente disporá de certa liberdade para eleger o servidor mais qualificado para recebê-lo, mas não disporá de liberdade nem quanto à expedição do ato atributivo do prêmio, nem quanto ao montante dele.

    Vê-se, aí, ao propósito de um mesmo ato, o convívio entre vinculação e discricionariedade.

  5. A discricionariedade é relativa, ainda, no sentido de que, por ampla ou estrita que seja, a liberdade outorgada só pode ser exercida de maneira consonante com a busca da finalidade legal em vista da qual foi atribuida a competência. Logo, seja qual seja a extensão da liberdade...

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