Entre o remédio e o corpo inquieto: de qual infantil falamos?

AutorCristiana Carneiro
CargoPsicanalista. Pós-doutora Sorbonne Paris VII. Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Páginas313-355
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.e75312
313313 – 355
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Entre o remédio e o corpo inquieto: de
qual infantil falamos?
Cristiana Carneiro1
Resumo
Tendo como temática a medicalização na educação, embasado na psicanálise freudiana, o pre-
sente trabalho visa a promover uma reexão sobre as estratégias medicalizantes de educadores
quanto a um aluno dito inquieto, ocorridas ao longo de um estudo de caso. Parte da hipótese
que tanto o ideário de infantil do adulto educador quanto o de corpo podem estar articulados a
um discurso que compreende a inquietude sobretudo por um viés que reduz a compreensão de
comportamentos ao uso/não uso do medicamento. Apresenta, como possível resultado, os efeitos
na relação adulto-criança que as concepções medicalizantes ensejam: individualização, redução
da compreensão ampliada e relacional da questão, patologização do comportamento e desrespon-
sabilização da escola.
Palavras-chave: Medicalização. Educação. Infância. Corpo. Psicanálise.
1 Introdução
Apesar de haver no Brasil, no campo das políticas públicas, iniciativas
que vão num sentido contrário às práticas medicalizantes, sendo uma delas
a resolução sobre práticas não medicalizantes do Conselho Nacional de
Saúde de 2015, ainda vemos poucas ressonâncias dessas diretrizes no co-
tidiano das escolas (CONNAS, 2015). A Resolução nº 177 do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)2, do
mesmo ano diz:
1 Psicanalista. Pós-doutora Sorbonne Paris VII. Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência contemporâneas (NIPIAC), disponível
em: www.nipiac.ufrj.br Coordenadora do GT da ANPEPP – Psicanálise e Educação.
2 Cf. Fórum de Medicalização da Educação e da Sociedade, disponível em: http://medicalizacao.org.br/resolucao-
-do-conselho-nacional-da-saude-csn-para-a-promocao-de-praticas-nao-medicalizantes/
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Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre o direito da criança e do adolescente de não serem
submetidos à excessiva medicalização, em especial no que concerne às questões de apren-
dizagem, comportamento e disciplina.
Parágrafo único. Para os ns desta Resolução, dene-se excessiva medicalização como a re-
dução inadequada de questões de aprendizagem, comportamento e disciplina a patologias,
em desconformidade com o direito da criança e do adolescente à saúde, ou que congure
negligência, discriminação ou opressão. (grifos nossos). (RESOLUÇÃO, 2005, [s. p.]).
Seguimos apontando a palavra supracitada redução, acreditando que é
justamente por uma redução de questões mais complexas a uma causalida-
de única, geralmente ligada a um discurso biologizante que práticas medi-
calizantes acabam sendo gestadas ou rearmadas na escola. Mas como esse
discurso está sendo criado e/ou rearmado pelos educadores? Que aspectos
poderiam contribuir/endossar essa lógica? Tais questões nos parecem fun-
damentais para se reetir, em nível micropolítico, nas razões possíveis da
diculdade de implantação de práticas não medicalizantes.
Hipotetizamos que tanto o ideário de infantil do adulto educador
quanto o de corpo podem estar articulados a um discurso que compreende
a inquietude, sobretudo pelo viés da patologia. Nesse sentido, embasado
na psicanálise, o presente texto visa a promover uma reexão sobre diferen-
ças na acepção de infantil e corpo e sua possível inuência na percepção e
compreensão da criança pelo adulto que a educa. Parte de um caso onde o
discurso dos educadores sugeria a redução do comportamento do aluno a
questões quanto ao uso/não uso do medicamento.
Os extratos de falas escolhidos para o presente trabalho se inserem
em uma pesquisa maior, ligada ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e
Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC)
que mapeou outras estratégias de professores diante dos alunos ditos in-
quietos e desatentos3. No entanto, aqui elegemos aquelas mais afeitas ao
que se chama de um discurso medicalizante, justamente porque, nesse re-
ferido caso, ele foi preponderante. A pesquisa maior, um estudo de casos
múltiplos, teve como foco cinco crianças/adolescentes encaminhadas da
escola a um serviço de saúde mental, mais especicamente ao Serviço de
3 A pesquisa contou com parceria da Universidade Federal Fluminense (UFF) por intermédio da professora Luciana
Gageiro Coutinho.

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