Repercussões jurídicas da biotecnologia no código civil: o papel do biodireito

AutorHeloisa Helena Barboza
Páginas17-40
17
REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA BIOTECNOLOGIA NO
CÓDIGO CIVIL: O PAPEL DO BIODIREITO1
Heloisa Helena Bar boza
Sumário: 1. Introdução. 2. Notas sobre o surgimento do Código Civil de
2002. 3. Notas sobre o conceito de biotecnologia. 4. Impactos da
biotecnologia no Código Civil. 5. O papel do Biodireito.
1. Introdução
Os progressos científicos, em especial os resultantes da
biotecnologia, vem promovendo, de há muito, interferências na vida
humana, as quais se acentuaram durante o século XX de modo jamais
cogitado, afetando os processos de nascimento, desenvolvimento da vida e
morte, em aspectos até então considerados imutáveis, por estarem fora do
alcance do poder científico. Contudo, a reprodução humana, a relação do
sexo biológico com o gênero e o retardamento da morte passaram a ser
regidos pelo saber m édico, que pode alterar o que seria o curso “natural”
dessas situações humanas. As repercussões dessas alterações nas relações
jurídicas, notadamente no âmbito civil, são profundas e fazem surgir
indagações muitas das quais ainda não encontraram resposta e podem ser
resumidas em uma pergunta central, que se desdobra em indagativas
subsequentes: a normativa constante do vigente Código Civil é suficiente
para lidar com os impactos jurídicos que a biotecnologia provoca? Se não
for suficiente o que deve ser feito? Inserir dispositivos suplementares no
Código Civil, alterar o Código Civil ou criar leis especiais?
As considerações que seguem tomam em conta: (a ) a presença de
uma codificação civil, que se aproxima de duas décadas de existência; e
(b) uma sequência de fatos desconhecidos na época da elaboração do
1 Texto elaborado com base em palestra proferida no Instituto dos Advogados do Brasil IAB,
por ocasião da celebração dos cento e setenta anos da entidade, em 2014. A autora agradece ao
Doutor Vitor Almeida pelo trabalho de revisão e acréscimos ao presente texto.
18
Código, o qual evidentemente deles não cuidou, mas que trata de situações
centrais para o Direito Civil atingidas por esses fatos novos. Impõe-se, por
conseguinte, analisar tais fatos para encaminhamento das soluções que se
buscam, a partir das normas existentes, visto que a urgência das respostas
não pode ficar à mercê da notória lentidão do legislador. Em outras
palavras, cabe indagar: como resolver as novas questões postas pela
biotecnologia com as normas de um Código Civil elaborado com base em
pressupostos considerados inabaláveis à época de sua concepção?
2. Notas sobre o surgimento do Código Civil de 2002
Algumas brevíssimas notas sobre o processo de aprovação do
Código Civil de 2002 são úteis, se não para justificar, para esclarecer a
preterição ou pouca atenção dada a alguns temas já então conhecidos, de
que são bom exemplo as técnicas de reprodução humana assistida. O
projeto do Código, vigente a partir de 2003, tramitou durante vinte e sete
anos no Congresso Nacional e recebeu mil e sessenta e três emendas. Na
época de sua aprovação final, o projeto tornara-se antigo, principalmente
por existir uma nova ordem jurídica instaurada no Brasil pela Constituição
de 1988, e uma nova face no mundo, que muito se transformara nas quase
três décadas que antecederam sua transformação em lei, fatos que tornaram
necessário um processo para sua atualização.
Não obstante todo esforço empreendido, que incluiu “emendas de
gráficas”, denominação dada às pequenas alterações de redação posteriores
à redação final, o conjunto de adequações do projeto da nova lei civil às
diretrizes constitucionais acabou por conter disposições assistemáticas.
Serve de exemplo dessas disposições o art. 1790, que veio a ser declarado
inconstitucional pelo STF. A decisão foi proferida no julgamento dos
Recursos Extraordinários (Res) 646721 e 878694, ambos com repercussão
geral reconhecida.
Fato é que o novo Código foi sucessivamente abalroado, desde o
nascedouro, por uma série de situações bastante distintas das existentes
quando de sua concepção. Nesse sentido cabe lembrar que a Constituição
foi o ápice do chamado “processo de redemocratização do país”,
estabelecendo profundas mudanças na ordem jurídica com a consagração
dos direitos fundamentais de forma explicita, e de modo direto a garantia
dos direitos sociais e individuais. Sobretudo, houve a consagração da

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT