As representações sociais dos professores de ciências sobre o corpo humano

AutorDelma Faria Shimamoto - Emília Freitas Lima
Páginas148-165

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1 Introdução

Desde* a origem2 da formulação proposta por Moscovici, em 1961, as representações sociais são caracterizadas como fenômenos complexos, nos quais o sentido de um dado objeto é estruturado pelo sujeito, no contexto de suas relações. A atividade representativa constitui processo psíquico capaz de tornar familiar e presente, no universo mental do indivíduo, um objeto que é exterior a ele. Assim, o objeto articula-se e relaciona-se com outros objetos presentes nesse universo, dos quais toma propriedades e lhes empresta as suas, processo orientado por experiências e valores do indivíduo.

Moscovici (1978, p.289) pontua nesse contexto dois processos da gênese psicológica das representações. A objetivação é o processo pelo qual a realidade é socialmente infletida, ou seja, é a passagem dos conceitos ou idéias para esquemas ou imagens concretas que se transformam em supostos reflexos do real. A ancoragem diz respeito à inserção do objeto numa rede de significações. Os elementos já formados e consolidados constituem referências para novas idéias, o que implica afirmar que a representação sempre se constrói sobre um já pensado.

A perspectiva moscoviciana de representações sociais considera os grupos sociais instâncias criadoras e comunicadoras de saberes. Eles constituem, portanto, um sistema de interpretação da realidade que rege as relações do indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o mundo, orientando e organizando condutas e comunicações, intervindo em processos como desenvolvimento individual e coletivo e as transformações sociais. Moscovici (1978) propõe que as representações sociais respondam por duas funções: a função de saber , que permite compreender e explicar a realidade, e a função de orientação , que serve de guia aos comportamentos e às práticas.

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Segundo Abric (2000), toda representação estrutura-se num sistema sociocognitivo, organizado em torno de um núcleo central, constituído por um ou vários elementos que dão significado à representação. Um elemento é considerado central, porque mantém um laço privilegiado com o objeto da representação, resultante das condições históricas e sociais que engendraram a representação social, sem o qual o objeto perde toda sua significação. Em torno do núcleo central, organizam-se os elementos periféricos, que oferecem uma contextualização e, por sua flexibilidade, permitem certa modulação individual da representação. Devido a sua situação periférica em relação ao núcleo central, esses elementos apresentam maior mobilidade, o que implica poderem mais facilmente modificar-se e adaptar-se, mediante a diversidade e a multiplicidade de experiências que o sujeito vivencia.

Herzlich (1991) ressalta que o fenômeno da representação é de alta complexidade, o que contribui para a existência de uma diversidade de concepções sobre representações sociais. Entretanto, a diversidade de concepções contribui também para a indefinição de um conceito para representações sociais. Moscovici (1978, p.56) afirma que, embora as representações sociais são entidades “quase tangíveis”, à medida que povoam nosso cotidiano, seu conceito não é considerado de tão fácil apreensão, porque está situado “na encruzilhada de uma série de conceitos sociológicos e de uma série de conceitos psicológicos” .

Essa indefinição, contudo, não tem subtraído a importância das contribuições dos estudos realizados em seu âmbito, em diferentes áreas. Dentre as pesquisas no contexto educacional, destacam-se as de Rangel (1993 e 1995). Em Das dimensões da representação do bom professor às dimensões do processo de ensino-aprendizagem , Rangel (1993) investiga, na ótica moscoviciana, como se dimensiona, em representações do bom desempenho docente, o processo de ensino-aprendizagem. Em Bom aluno: real ou ideal? Rangel (1995) investiga dimensões da representação do bom aluno no plano real ou ideal, expressa por grupos de professores, alunos, pais e funcionários de escola pública, particular e militar.

Nessa linha de estudos, o trabalho de Salles (1995) investiga, com base nos depoimentos de professores, diretores e inspetores de alunos, a representação social sobre o adolescente e a adolescência, procurando perceber como essa representação social insere-se nas relações cotidianas da escola.

A investigação de Souto (1995) objetiva, com base nos relatos dos funcionários, alunos e professores de determinada universidade pública brasileira, a representação social do professor e seu papel social dentro dessa instituição.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, n. 39, p. 147-165, Abril de 2006

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Sobre o fracasso escolar, Penin (1992) ressalta, em sua investigação, a importância de os agentes educativos conhecerem suas representações sobre os alunos pobres e suas famílias e de refletir sobre as condições de vida deles e a visão que mantêm quanto à necessidade de assessoramento aos alunos, por parte das famílias, que os leva a exigir delas o que não podem realizar.

A esse respeito, a pesquisa de Nicolaci-da-Costa (1987) indica evidências de que tanto o sucesso como o fracasso escolar do aluno das classes desfavorecidas podem implicar sofrimento, uma vez que o preço é o abandono ou o desprestígio dos valores, atitudes, comportamentos e linguagem de seu grupo sociocultural de origem, arrisca-se, assim, o aluno a perder por completo sua identidade cultural.

Vale ainda reproduzir alguns dados obtidos na pesquisa realizada por Alves-Mazzotti (1994) com meninos trabalhadores e de rua e suas representações sobre a escola. Para nenhum dos grupos mencionados, a escola é vista de forma positiva. Embora haja menção à escola “ideal” que “ajuda a ser alguém na vida”, não conseguem percebê-la como importante para o trabalho e o futuro. Os professores são retratados como mal educados, que não respeitam o aluno nem se esforçam para que ele aprenda.

Imersa nesse contexto, a presente investigação As representações sociais dos professores sobre corpo humano e suas repercussões no ensino de Ciências tem como objetivo acessar as representações sociais dos professores sobre corpo, e como essas representações, segundo os depoimentos dos próprios professores, fazem-se presentes em sua conduta pedagógica, no que se refere ao tratamento dessa temática em sala de aula. A opção pelo referencial das representações sociais é porque ele atende aos propósitos do presente estudo, pois investiga os sistemas de referência (valores, crenças, afetividade, símbolos, convicções, contradições) como produtos sociais referidos nas condições de sua produção (MOSCOVICI, 1978; ALVES-MAZZOTI, 1994; ABRIC, 2000; JODELET, 2001).

A justificativa deste trabalho fundamenta-se, essencialmente, na crença de que a pesquisa das representações sociais e sua respectiva influência sobre a prática pedagógica possibilitam aos professores, por meio da reapropriação do sentido da história pessoal e profissional, a tomada de consciência necessária à revisão e reafirmação de sua prática pedagógica cotidiana. Outra razão para a realização deste estudo, decorrente da anterior, liga-se ao reconhecimento de sua necessidade para as possíveis mudanças na prática profissional do professor de Ciências Naturais, o que é desejável, quando se almeja promover melhor qualidade no ensino que se realiza.

Em específico, sobre corpo e suas representações, somente nos últimos anos os pesquisadores têm se interessado por essa temática e se debruçado sobre ela. No entanto, foi a partir da década de 1980 que essas investigaçõesPage 151se aprofundaram e, segundo Cavalcanti (2001), esse desenvolvimento devese à realização, em 1990, do “Annual Meeting of the American Ethnological Association”, cujo tema central foi “The body in society and culture”.

No que se refere em particular ao interesse desta pesquisa, relatamse, sucintamente, alguns estudos que articulam as representações sociais de professores sobre corpo com a prática pedagógica.

O estudo desenvolvido por Kofes (1985), que investiga as representações sociais dos professores de Educação Física sobre o corpo humano, aponta que os professores privilegiam uma concepção cientificista do corpo como estrutura biológica, desconsiderando as outras possíveis representações que os alunos possam ter a respeito do próprio corpo. Isso pode interferir em seus comportamentos corporais.

No trabalho realizado por Souza (1993), a autora resgata a concepção de corpo por meio das representações dos professores de Educação Física. Essas representações, como no estudo anterior, revelam a supremacia dos aspectos biológicos do corpo no desenvolvimento global humano.

Nessa mesma direção, Daolio (1995) analisa a prática de professores de Educação Física. O trabalho constata uma concepção de corpo primordialmente biológica, arraigada na prática dos professores, o que implica entender, segundo o autor, que o patrimônio biológico humano constitui uma noção universal de corpo humano.

Destaca-se também a pesquisa realizada por Novais (1995), desenvolvida com professoras de pré-escola, na qual a...

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