A REPRESENTAÇÃO DO MAL FEMININO NO FILME A BRUXA (2016)

AutorGabriela Muller Larocca
Páginas88-109
GÊNERO|Niterói|v.19|n.1|88 |2. sem.2018
Gabriela Muller Larocca1
Resumo: O presente artigo discute as representações do feminino e do Mal a
partir da análise do filme de horror A Bruxa, dirigido pelo estadunidense Robert
Eggers e lançado em 2016. O enfoque principal é problematizar como a narrativa
cinematográfica de horror, centrada na temática da bruxaria, dialoga com uma
tradição antifeminina antiga que associa as mulheres ao Mal e ao demoníaco,
perpetuando uma visão negativa do feminino, relacionado desta forma a forças
ocultas e reproduzindo ansiedades, medos e mitos históricos.
Palavras-chave: Gênero; Bruxaria; Cinema de Horror
Abstract: This article discusses the representations of the feminine and the Evil
through the analysis of the horror movie The Witch: A New-England Folktale,
directed by the american Robert Eggers and released in 2016. The main focus is
to question how the horror movie narrative, centered on the theme of witchcraft,
dialogues with an ancient anti feminine tradition that associates women with Evil
and the demonic, perpetuating a negative view of the feminine, related in this
way to hidden forces and reproducing historical anxieties, fears and myths.
Keywords: Gender; Witchcraft; Horror Cinema
Introdução
A cultura ocidental, influenciada por um discurso misógino e uma tradição
antifeminina, por muito tempo conservou em seu imaginário a ideia de que a
prática da bruxaria maléfica se encontrava intimamente conectada à natureza
feminina. Esta associação entre o feminino e a bruxaria ganhou forças entre o
final da Idade Média e início da Moderna, impulsionando uma grande repressão
e também a escrita de obras de um domínio do conhecimento - a demonologia
- como o Malleus Maleficarum, publicado entre 1486 e 1487 por dois frades
pregadores Heinrich Kramer e James Sprenger. Apesar de não ser o único texto
escrito sobre o assunto, o tratado explicitava claramente os argumentos que o
discurso misógino articulou naquele determinado contexto.2
O discurso antifeminino popularizado entre os séculos XV e XVII não foi uma
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. E-mail: gabrie-
la_larocca@hotmail.com
2 Além do Malleus Maleficarum podemos citar: o Formicarius escrito por Jean Nider entre 1435 e 1437 e a obra
de Jean Bodin, A Demonomania das Feiticeiras, publicada em 1580.
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A BRUXA (2016)
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novidade, mas sim o resultado de uma imagem de feminilidade construída por
uma visão extremamente negativa e herdeira de tradições antigas que foram
amplificadas pelos primeiros textos doutrinários do cristianismo, especialmente
pelas constantes indagações acerca da introdução do Mal no mundo. A Mulher3
foi definida como uma criatura essencialmente negativa, fonte da tentação e
infortúnio dos homens. A Igreja Católica recorreu a esta tradição pagã e aos
primeiros textos cristãos para responsabilizá-la por todas as misérias humanas,
vinculando-a também ao próprio Diabo ou Satanás, figura que se tornou cada vez
mais presente no imaginário da época Tardo-Medieval e Moderna.
Contudo, a associação entre o feminino e o Mal não desapareceu com o fim
das perseguições na Modernidade e se tornou tema privilegiado em um contexto
muito diferente. A bruxa é uma personagem recorrente no cinema de horror,
utilizada como artifício para inspirar medo e alertar para os perigos encarnados
pelo feminino. Embora presente em variados gêneros cinematográficos, é no
horror que esta personagem é constantemente associada ao demoníaco, ao
corpo e à sexualidade feminina. Nesse sentido, a representação construída
pelo horror estabelece fortes laços com um discurso antifeminino codificado
e propagado no mundo medieval e que impulsionou a caça às bruxas na
Modernidade. O estereótipo da mulher-bruxa não desapareceu e continua, na
contemporaneidade, povoando o imaginário coletivo, principalmente por meio
de produtos midiáticos como o cinema e a televisão.
O horror cinematográfico despontou na primeira metade do século XX,
porém o estereótipo da mulher-bruxa se popularizou principalmente a partir
das décadas de 1960 e 1970.4
Isso ocorreu paralelamente ao movimento de libertação das mulheres e
da segunda onda feminista, representando o medo sentido por autoridades e
estruturas masculinas, além de alertar para a necessidade de monitoramento das
mulheres e controle do empoderamento feminino. As bruxas cinematográficas
se mostravam engajadas em buscas irracionais por beleza, juventude, sexo, poder
e vingança, frequentemente procurando subverter a tradicional hierarquia
de gêneros, subjugando os personagens masculinos e transformando-os em
seus servos ou amantes. Nesse sentido, tornavam-se uma ameaça para toda a
sociedade, precisando ser punidas severamente.
Segundo Walter (2015), um dos principais paradigmas das personagens é a
destruição de casais e famílias felizes. Dessa forma, mesmo sendo extremamente
poderosas, ao final quase todas são derrotadas ou por uma mulher obediente e
casta - sua contrapartida - ou por um personagem masculino. Ao se mostrarem
3 O termo Mulher é empregado ao longo do artigo no sentido de representação de uma essência inerentemente
feminina, contrapondo-se à ideia de mulheres como seres históricos, produtos e produtoras de relações sociais.
4 A Maldição do Demônio (Mario Bava, 1960), Horror Hotel (John Moxey, 1960), Bruxa – A Face do Demônio
(Cyril Frankel, 1966), Revenge of the Blood Beast (Michael Reeves, 1966), Suspiria (Dario Argento, 1977) e Inferno (Dario
Argento, 1980).
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