Responsabilidade civil do incapaz: objetivação da culpa ou responsabilidade civil objetiva?

AutorMauricio Bunazar
Páginas298-318

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Introdução

A Ciência do Direito por longo período teve como objeto de seu estudo a norma jurídica, analisando-a de maneira isolada, descontextualizada do sistema do qual necessariamente faz parte. Por essa razão, muitas questões ficaram sem resposta ou obtiveram resposta insuficiente, como, por exemplo, a questão da possibilidade ou não da existência de normas jurídicas desprovidas de sanção. Contudo, a partir dos estudos de Santi Romano e, principalmente, de Kelsen1 houve uma viragem metodológica consistente na subs-tituição do objeto de estudo da Ciência jurídica, que da norma passou ao ordenamento jurídico.

Com isso, problemas antes aparentemente insolúveis2 passaram a ter solução quase que imediata, v. g., a sanção não necessariamente precisa fazer parte da estrutura semântica da norma, é suficiente que o ordenamento a contemple.

Porém, e como soe acontecer, novos problemas surgiram entre os quais destacam-se o de se saber se o ordenamento jurídico, enquanto complexo normativo, possui unidade e, se sim, qual o fator que confere unidade a esse sistema.

A quase totalidade dos Teóricos do Direito vê o ordenamento como um complexo normativo com unidade, afinal a própria ideia de ordenamento pressupõe uma ordem, uma estrutura sistematizada. Todavia, quanto ao elemento unificador do ordenamento, grassa controvérsia entre os autores.

Para Kelsen3, no que fielmente é seguido por Bobbio, o elemento unificador é a Norma Fundamental, pois sendo o fundamento da ordem jurídica, justifica e valida todas

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as demais normas que lhe seguem, sendo que a contradição entre uma norma inferior e a norma fundamental resolve-se com a anatematização daquela e a consequente preservação da unidade do sistema.

A tarefa do intérprete seria diagnosticar e solucionar as contradições, sempre aparentes, por meio dos tradicionais critérios da hierarquia, da especialidade e da anterioridade.

Para outros cientistas, entre os quais destacamos Larenz e Ascensão, a unidade do ordenamento jurídico é proporcionada pelo intérprete, e não apenas preservada por ele.

Vale dizer, enquanto que para Kelsen4 a unidade é um prius que deve ser conservado pelo intérprete, para Larenz5 e Ascensão é um posterius, perseguido e levado a efeito pelo intérprete.

Cremos, com base no que a experiência mostra, que realmente é tarefa do hermeneuta dar coerência ao ordenamento jurídico, ou melhor, é sua tarefa fazer da multiplici-dade de leis um todo ordenado coerentemente.

Para tanto, deve valer-se dos conceitos jurídicos6, cuja precisão é fundamental para compreensão do fenômeno jurídico em sua plenitude. Assim, a dogmática jurídica cresce em importância, pois que é relevante ferramenta no mister de conferir unidade ao ordenamento. Neste sentido, Ascensão afirma que:

“A dogmática tende a reduzir à unidade o sistema jurídico: ou melhor, procura apresentar o que há de relevante no dado jurídico numa unidade, que corresponde à unidade existente na própria ordem normativa da sociedade. Para isso aproximará o que é semelhante, afastará o que é divergente; ordenará em institutos preceitos singulares; determinará as categorias (pessoa singular, direito subjetivo...) que travejam unitariamente o corpo do direito; formulará os conceitos que abrangem esses institutos e categorias que pouco a pouco se vão formando; detectará paralelamente os princípios fundamentais que perpassam pelo sistema e o vivificam”7.

Cabendo ao intérprete conferir unidade ao ordenamento, não é possível conceber, dentro do mesmo sistema, conceitos antitéticos entre si.

Ora, é justamente em razão de haver no ordenamento jurídico brasileiro duas acepções antitéticas da culpa que surge polêmica sobre ser a responsabilidade civil do incapaz objetiva ou subjetiva.

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Assim, buscaremos demonstrar que a responsabilidade civil do incapaz na sistemática do atual Código Civil é subjetiva, e não, como pretendem alguns8, objetiva.

Para tanto, valer-nos-emos de alguns conceitos hauridos da ciência criminal9 que, como é sabido, influenciou e influencia diretamente a estruturação da responsabilidade civil.

Com isso, cremos conseguir demonstrar quais as consequências do manejo incauto de conceitos como culpa, imputabilidade e culpabilidade, bem como aclarar a posição jurídica do incapaz no atual sistema.

1. Fundamento da responsabilidade jurídica

A responsabilidade, enquanto considerada como consequência de um comportamento inconveniente, é um fator que está intimamente ligado com qualquer atividade humana, é o mecanismo que serve para ajustar a conduta das pessoas a certos padrões comportamentais pré-estabelecidos.

Assim, encontramos a ideia de responsabilidade ligada à religião, à moral, à ética e ao direito, sendo certo que é ao último que dedicaremos nossa atenção10.

A existência de uma responsabilização jurídica em razão de condutas humanas, comissivas ou omissivas, encontra raízes na necessidade de se manter o equilíbrio social que, em virtude de uma dada conduta, tenha sido abalado.

Para a compreensão do que seja esse equilíbrio social que se procura manter, adotaremos como premissa desse estudo a existência do contrato social11.

O contrato social pode, grosso modo, ser entendido como o pacto fundado na vontade geral, pelo qual as pessoas consentem em submeter a um ente que criam a responsabilidade pela formação e/ou manutenção de uma situação social harmônica12.

O ente criado é autônomo, porém obrigado a respeitar a essência de cada uma daquelas vontades de que é formado, assim, sua realização não significa perda de liberdade

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em favor do Estado, e sim garantia de respeito a esse valor por parte de todo o corpo social, inclusive do próprio Estado13.

O Estado surge para, entre outras funções, evitar que os impulsos egoísticos dos homens física ou intelectualmente superiores tolham a liberdade dos outros componentes do corpo, ou seja, substitui-se um sistema baseado na força por um sistema fundado na razão, ainda que, em ultima ratio, garantido pela existência de uma força superior à força de qualquer homem isoladamente considerado, qual seja a do Estado.

Cada uma das pessoas componentes do corpo social passa a ser um elemento fundamental na superestrutura criada, pois o Estado tem como fim único promover e garantir o pleno desenvolvimento da personalidade humana, ou, como preferem alguns, garantir o alcance do bem comum.

Ora, no momento em que se erige a pessoa humana, ainda que individualmente considerada, como fundamento da própria existência do Estado, há que se desenvolver mecanismos aptos a salvaguardá-la das consequências danosas de comportamentos não tolerados pelo corpo social, e é justamente essa a função social da responsabilidade jurídica.

2. Responsabilidade penal, civil e administrativa: institutos ontologicamente idênticos com estruturas e consequências quantitativamente diversas

Quando, no item anterior, expusemos o fundamento da responsabilidade jurídica, o fizemos em termos gerais, buscando a fundamentação da própria ideia de sanção, encarada como a resposta do ordenamento jurídico à sua violação.

O objetivo dessa abordagem lata é demonstrar a inexistência de diferença ontológica entre os sistemas de responsabilidade penal, civil e administrativa e propor uma análise unitária do fenômeno jurídico-sociológico da responsabilidade14.

Com isso não se nega alguma diversidade entre aqueles sistemas, apenas se busca delimitar tal diversidade ao quantum da sanção e à estrutura jurídica necessária para, em cada caso, a deflagrar.

Destarte, estudaremos a estrutura de cada uma das formas de responsabilização jurídica, considerando como estrutura o mecanismo jurídico suficiente para aplicação da resposta estatal, isto é, da sanção.

2.1. Estrutura da responsabilidade penal

A pena, em sentido estrito, é a mais violenta sanção de que o ordenamento jurídico dispõe e tal se dá porque ela incide sobre os bens jurídicos mais caros ao homem, quais sejam a vida e a liberdade15.

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Por essa razão, o comportamento antissocial que a ensejou deve, igualmente, ter ferido um bem jurídico dos mais relevantes para a sociedade e, além disso, o mecanismo de sua aplicação deve ser mais rigoroso que o das demais sanções, sejam civis, sejam administrativas16.

Para que seja aplicada uma pena, é necessário que tenha sido cometido um crime por alguém imputável17.

Crime é o fato típico e antijurídico, ou seja, é a realização dolosa...

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